OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA

MÍDIA & HISTÓRIA

Riocentro continua sendo uma história de carochinhas

Por José Cleves em 18/02/2014 na edição 786

 

As recentes conclusões do Ministério Público Federal (MPF) sobre o atentado do Riocentro, em 1981, divulgadas no site da Folha de S.Paulo em 16/02, podem levar, segundo as investigações, cinco militares e um delegado ao banco dos réus, o que não é nenhuma novidade para este repórter, que acompanha o caso desde o ocorrido. Pelo contrário, tem mais gente envolvida nesta farsa e os jornalistas mais atentos nunca tiveram dúvidas de que o atentado fora praticado pela ala radical das Forças Armadas que desejava, com essa bomba, convencer o grupo moderado do Exército que os radicais civis de extrema-esquerda ofereciam riscos ao país e, por essa razão, não era o momento certo de os militares entregarem o poder.

Realmente, se o artefato tivesse sido detonado dentro do Riocentro, em meio a mais de 20 mil pessoas, a tragédia seria atribuída a grupos radicais de extrema-esquerda e isso dificultaria em muito a transição do poder, como desejava a ala moderada das Forças Armadas, sob o comando do general Ernesto Geisel. Mesmo com o fracasso do ato terrorista (a bomba explodiu no colo de um dos militares, quando era manipulada dentro do carro utilizado para transportar o grupo responsável pelo atentado), os milicos tentaram convencer a imprensa e a opinião pública que o sargento Guilherme Pereira do Rosário, que morreu no local, e o capitão Wilson Luiz Chaves Machado, foram vítimas de terroristas civis.

O pior disso tudo é que o presidente João Baptista Figueiredo, amigo de infância do general Newton Cruz, então chefe da Agência Nacional, do Serviço Nacional de Inteligência (SNI), comandado pelo sucessor de Figueiredo neste cargo, general Otávio de Medeiros, não fez o menor esforço para esclarecer a verdade. Pelo contrário, deixou que Cruz resolvesse a questão ao seu modo. Ora, foi como mandar o rato vigiar queijo. A primeira coisa que o general Cruz fez foi destruir todas as pistas possíveis que pudessem levar ao esclarecimento da verdade. O objetivo era criar o “outro fato”. A mentira. A meta era endurecer o regime contra os radicais de esquerda, de modo a atribuir a esses “terroristas” tudo que de ruim ocorresse no país a partir de então.

O uso da inteligência para o mal

Prova disso foi o assassinato do jornalista Alexandre von Baumgarten, executado com um tiro na cabeça em alto mar, com o corpo aparecendo quase uma semana depois. Baumgarten, que não era flor que se cheire, era ligado aos milicos e chegou a ganhar o título da revista O Cruzeiro para divulgar o nome do chefe do SNI, Otávio de Medeiros, que pretendia suceder Figueiredo numa provável eleição indireta, para que os milicos pudessem ficar mais cinco anos no poder, mesmo após a transição. O general ganhou muita força dentro do SNI, então a maior agência de informação do mundo, e tinha o apoio de grande parte dos generais de diferentes patentes porque sabia de muita coisa errada dentro do governo.

A questão é que Baumgarten, muito ligado a um informante que eu tinha dentro do sistema, começou a mentir para os milicos sobre a tiragem da revista e foi expulso do SNI por Newton Cruz, logo após o atentado do Riocentro. Maquiavélico, o jornalista deixou a comunidade de informações do governo com um dossiê, que ele denominou de Yellow Cake, contendo todas as informações sobre o atentando do Rio Centro, deixando o general Cruz apavorado. Cerca de duas semanas após a expulsão do jornalista do SNI, em janeiro de 1981, um dos responsáveis pela sua escaramuça disse-me que o jornalista corria riscos de vida, não apenas por mentir sobre a tiragem da revista, mas porque sabia demais sobre o atentado e também sobre a remessa de urânio para o exterior e outras coisas erradas do governo militar.

Quando o general Golbery do Couto e Silva foi expulso pelo presidente Figueiredo do cargo de ministro chefe da Casa Civil, em agosto de 1981, o “bruxo”, como o general era conhecido pela sua extraordinária capacidade de persuasão dentro das Forças Armadas (mandou e desmandou no governo Geisel), começou a reunir provas para se vingar de Figueiredo. Como foi o fundador do SNI, sabia quase tudo de errado que acontecia no país e se valeu das informações obtidas por Baumgarten para destilar o seu ódio contra a linha dura do Exército e, principalmente, contra o presidente Figueiredo.

Aliás, Golbery teve uma breve passagem por Belo Horizonte, quando serviu no quartel-general da Infantaria Divisionária da 4ª Região Militar (ID/4), logo após se insurgir contra o governo do presidente Juscelino Kubistchek. Era, realmente, um gênio, segundo diziam os militares que o conheceram. Um deles, já falecido, chegou a fazer uma profecia. “Se ele (Golbery) usar 10% de sua inteligência para o mal, estaremos ferrados.” A previsão, que felizmente não se concretizou, ocorreu anos após o golpe militar de 1964, quando o general montou o SNI com arquivos do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes), também criado por ele.

O grande adversário da mentira

A artilharia deste general anti-linha dura e as ameaças de Baumgarten, que prometia colocar os podres do SNI para fora, resultaram na execução do jornalista e de sua mulher, em outubro de 1982. O casal foi sequestrado na Praça XV, no Rio, e levado para o alto mar, onde foram mortos com tiros na cabeça e desovados. Parte do dossiê do jornalista, que falava sobre o atentado do Riocentro, por exemplo, desapareceu.

O resto da história todos sabem: as acusações contra o SNI “queimaram” o filme do general Otávio de Medeiros, que não mais teve forças para sustentar a sua tão sonhada candidatura à sucessão de Figueiredo, e o general Newton Cruz, apontado como mandante da morte do casal, livrou-se da condenação. Mas a versão militar sobre o atentado do Riocentro resistiu, apesar de seu enredo bizarro e esdrúxulo, e isso tem uma explicação: o medo que grande parte da imprensa tinha de contrariar o poder.

O mais triste, em tudo isso, é que este medo persiste, com a diferença de que antes era a arma que intimidava e agora é o dinheiro. A grande – e também a pequena – imprensa continua atrelada ao poder e, enquanto isso ocorrer, vai ser difícil para a classe jornalística derrubar as versões absurdas dos governantes, até porque boa parte dos profissionais da comunicação gosta tanto do dinheiro quanto os seus patrões.

A esperança é a internet, não há outra. A mídia virtual, com todos os seus devaneios e loucuras, é, sem dúvida, o grande adversário da mentira no mundo atual. Se fosse hoje, por exemplo, o Riocentro seria desmascarado alguns segundos após o sucedido e não haveria força miliar suficiente (ou dinheiro) capaz de desmontar o fato verdadeiro.

 

 

Artigos de José Cleves publicados no Observatório da Imprensa

Maio/2013

Coisa de imprensa sensacionalista e burra

José Cleves

Boa parte da imprensa está botando fogo num debate perigoso para o Brasil e injusto para as suas crianças e jovens: o de que é preciso reduzir a maioridade penal de 18 para 16 anos, como forma de se combater o elevado índice de criminalidade urbana no País.

O pavio foi aceso pelo governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, que desembarcou em Brasília com a receita da pólvora na mão para implodir o “dragão do crime” que assola a capital paulista e o resto do Brasil. Segundo o tucano, este dragão tem menos de 18 anos e precisa de ter a sua idade penal reduzida em pelo menos dois anos para ser banido da sociedade.

Inverteram a ordem dos fatores. Agora são os menores que usam os adultos, ao contrario do que dizem os boletins de ocorrência da polícia, onde o que mais se vê é bandido barbado usando crianças como escudos para ficarem na impunidade ou políticos com cara de vô desviando merenda das escolas para o enriquecimento ilícito em cima das crianças.

Ou seja, para os defensores dessa bandeira do Alckmin (e da imprensa maldosa), os meninos do Brasil é que são os culpados das mazelas e da violência no País. Seriam eles os responsáveis, por exemplo, pelos estouros dos caixas eletrônicos, tráfico de armas, de drogas, seqüestros, rombos nos cofres públicos, fraudes eleitorais e “compra de deputados”.

Não vai demorar muito e os mensaleiros vão falar que foram os nossos filhos é que compraram os deputados e não eles que são grandes demais para cometerem tamanho absurdo.

Ah, me ajude ai governador e seus Datenas da vida. Querer fazer a cabeça da opinião pública com esses absurdos, sem qualquer sustentação jurídica e números, é querer transferir os problemas do Brasil para quem não tem nem direito de defesa.

“Pequenos, violentos e quebrados

Se reduzirem  a menoridade para 16 anos, como querem muitos, o Brasil fará parte de uma minoria insignificante de países que adotam tal medida sem nenhum sucesso, pelo contrário, são modelos de nações atrasadas (Afeganistão, Coréia do Norte, Nepal e mais uma meia dúzia de países pequenos, violentos e quebrados). Pejorativos que, no Brasil de Alkmin e dos apresentadores sensacionalistas, se aplicam aos jovens.

A questão é que, com a opinião pública formada a ferro e fogo, grande parte dos políticos, mesmo sabendo que o buraco é mais embaixo, acaba concordando com essa mentira para falar a mesma língua do povo.

Em Minas, a A Rádio Itatiaia, campeã de audiência no Estado,  fez uma pesquisa com os parlamentares da bancada mineira para saber quem era contra ou a favor da redução da maior idade no País.

Claro que a maioria foi favorável a essa redução. Metade por incompetência e a outra metade por temer o eleitorado que já está de “cabeça feita” pelos formadores de opinião que pensam com os cotovelos. É fácil colocar a culpa em quem não tem emprego, família, oportunidade, principalmente quando gente de sua idade faz coisa errada e não tem correção da família ou do governo que simplesmente o ignoram.

Aliás, é o mesmo discurso dos que são contra os defensores dos Direitos Humanos, por entenderem, equivocadamente, que defender direitos fundamentais é defender bandidos.

A pecha chegou a tal ponto que alguns professores aboliram a expressão Direitos Humanos nas faculdades,  pelos Direitos Fundamentais Positivados, que vem a ser a mesma coisa, porém sem o composto.popularizado  pela  parte ruim da imprensa.

Os números provam que não são as crianças e os adolescentes que mais matam, mais roubam, mais corrompem e mais praticam crimes no País. Pelo contrário. Os dados provam que eles são vítimas de um governo que nunca investiu em educação como deveria, dificulta o primeiro emprego, não se preocupa com as crianças e nem com o seu futuro.

Crianças tratadas como ratos de esgoto

Já os adultos roubam, matam, seqüestram, estupram, traficam drogas, armas e corrompem as autoridades para desviar o dinheiro público e ficam impunes. Mentem para a população, abusam da autoridade e manipulam a opinião pública, como agora com essa discussão fora de foco.

Tenho cinco  filho, mais de 40 anos de jornalismo a céu aberto e, portanto, autoridade para falar sobre esse assunto com conhecimento de causa. Criaram o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), mas não arrumaram meios para tratamento do menor infrator, com internações dignas. O menor que pratica crimes é jogado na rua, como ratos de esgoto. Proibiram os nossos filhos de trabalhar, mas não arrumaram meios para  proporcionar-lhes estudos e qualificação profissional ao alcance de todos.

Em resumo, deram às crianças e adolescentes do Brasil o direito de apodrecerem na rua, em total estado de abandono e desdém, como se não fossem gente. Todo dia tropeço em crianças drogadas debaixo de viadutos em Belo  Horizonte.

Os marmanjos podem tudo

Já os marmanjos,  pelo contrário, podem tudo. Podem roubar, estuprar e  matar e, quando muito, pagar apenas 1/3 da pena, quando pagam. Podem  traficar drogas, armas e até usar as crianças e adolescentes como escudos. Porque esses parlamentares que são a favor da redução da maior idade no Brasil não votam leis obrigando o governo a investir mais na educação dos jovens? Porque não votam leis obrigando os bandidos a pagarem a pena total pelo crime cometido? Porque não votam leis obrigando os presídios a produzirem para o auto-sustento de seus internos? Porque não votam leis permitindo ao menor trabalhar, conforme o seu desejo, desde que estudem? Porque não votam leis mais duras para os adultos que roubam o dinheiro público?

Nunca vi, em todos esses anos de jornalismo, menor buscando armas e drogas no exterior, ou roubando o dinheiro público. Muito menos mentindo para a opinião pública. Podem pesquisar na Internet que verão que 99,9% dos bandidos brasileiros têm mais de 18 anos. Então, o foco da discussão sobre a criminalidade urbana no Brasil tem que ser outro,  não este.  Pelo visto, o discurso populista de Alkmin sairá pela culatra, a menos que prevaleça a burrice e a insensatez.

 

 

 

 

Abril/2013

Imprensa não está preparada para o jornalismo online

Por José Cleves em 30/04/2013 na edição 744

 Essa vida de repórter que vira notícia está me deixando cada dia mais decepcionado com a nossa categoria. Toda vez que sou personagem central de um fato de maior repercussão, acordo contrariado e envergonhado com o noticiário a respeito do assunto. Agora mesmo, fui ouvido como testemunha no julgamento de Marcos Aparecido dos Santos, o Bola, réu acusado de ter matado em 2010 a ex-amante do goleiro Bruno, Eliza Samúdio, e o resultado da notícia a respeito do que falei no júri foi desastroso em alguns veículos de comunicação.

Ocorreram erros de informação e de discernimento, numa afronta aos fundamentos do jornalismo. Por que erram tanto? Não sei, tudo parece muito confuso, mas alguma coisa tem que ser feita para que a nossa imprensa não venha a ser responsabilizada pela formação equivocada da opinião pública.

A pressa do jornalismo online acirrou a competição entre os veículos e isso pode explicar tantos erros porque grande parte dos jornalistas responsáveis pelo noticiário em tempo real são jovens recém-formados, com pouco conhecimento de fatos passados e sem uma retaguarda eficiente. A impressão que se tem é de que do jeito que se ouve, se escreve e publica, sem pesquisa e avaliação prévia da redação, como ocorre com os repórteres de rádio e TV, quando estão ao vivo.

Repetentes da Escola Base

Ora, o jornalismo escrito não goza de recursos que a tecnologia das emissoras de rádio e televisão possui, como microfones e relatos na primeira pessoa de seus personagens. O repórter do impresso – ou do online escrito – registra o que viu ou escutou, numa rapidez tão grande que o fato é reconstituído à medida do seu acontecimento, e isso coloca em risco o resultado final dessa transmissão relâmpago de pensamentos.

Não é todo repórter que está preparado para isso, daí os erros de informação. Até porque, muitos deles têm dificuldades para organizar tanta informação ao mesmo tempo, alguns por falta de experiência. Esta coisa precisa de ser resolvida pela redação. Tem que “dar um time” entre o que se escreve e a publicação, para a revisão criteriosa do texto. Os erros na cobertura do julgamento foram tantos, que o polêmico advogado de defesa Ércio Quaresma, aborrecido com as informações truncadas, advertiu a imprensa sobre a necessidade de se qualificar primeiro para informar depois. Disse o criminalista no final do meu interrogatório, exibindo o meu livro A Justiça dos Lobos – por que a imprensa tomou meu lugar no banco dos réus (nome, aliás, muito sugestivo para o assunto em pauta).

“A imprensa precisa usar cotonetes, pois não está ouvindo direito o julgamento”, ele disse, referindo-se, principalmente, a uma informação equivocada sobre o que dissera no dia anterior a respeito do réu. O livro narra erros cometidos pelos repetentes da Escola Base em 2000, quando boa parte dos jornalistas comprou lacrada a versão da polícia de que eu havia matado a minha mulher, vítima de um assalto que a polícia transformou em homicídio de minha autoria. O erro levou-me à condição de réu julgado e absolvido, com o processo sendo arquivado em 2009 com a minha versão inicial do assalto e a prova e contraprova das fraudes do inquérito.

A “prisão”

Intimado pela defesa de Bola para desqualificar o trabalho do ex-delegado Edson Moreira, o mesmo do meu caso, neguei-me a comparecer ao fórum por entender que em nada poderia colaborar com o julgamento e também porque não queria mais saber de holofotes sobre esse meu drama. Não teve jeito. Diante da rebeldia, a juíza Marixa Fabiane Lopes determinou a minha condução coercitiva ao tribunal, uma espécie de prisão, com direito a invasão de meu apartamento por quatro militares e três oficiais de justiça que me levaram à força.

Fiquei dois dias aguardando o depoimento no fórum – eu, o deputado estadual Durval Ângelo, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de MG, e o corregedor-geral da Polícia Civil de MG, delegado Renato Patrício Teixeira, ambos também arrolados como testemunhas de defesa e de acusação, respectivamente. Ficamos incomunicáveis em salas separadas e dormimos em um hotel do centro de Belo Horizonte, sem direito a televisão, telefone e contato um com o outro. Os quartos foram previamente revistados, inclusive com detectores de metal. Nossas bolsas foram revistadas e o corredor guardado por oficiais de justiça e militares.

Marcaram o meu depoimento para o dia 24/4, mesmo dia do interrogatório do ex-delegado Edson Moreira. Ele pela manhã e eu à tarde; depois inverteram a ordem e fui o primeiro a ser ouvido. Ao final do interrogatório, de mais de quatro horas, a juíza me pediu desculpas pela coerção, alegando que o meu depoimento era considerado imprescindível pela defesa que já havia me intimado no julgamento de Bruno, porém com endereço errado, o que facilitou a minha rebeldia.

Ou o delegado sabia da armação ou foi usado pelo grupo

Vamos ao que eu disse e ao que, infelizmente, foi divulgado por parte da imprensa.

O interrogatório começou com o advogado querendo saber dos erros praticados pelo ex-delegado Edson Moreira no meu caso. Relatei, em detalhes, as fraudes existentes no inquérito, como a montagem fotográfica grotesca de um revólver sobre uma luva (na verdade, um pano preto), para dizer que eu utilizei uma luva (e assim a polícia justificar a inexistência de pólvora em meu braço).

Falei, ainda, da farsa sobre os dois depósitos desta arma – o primeiro dois dias após o assalto e o outro uma semana depois para a montagem da arma sobre o pano preto. Enfim, respondi, de frente para a juíza Marixa Fabiana, e de perfil para os sete jurados, tudo que o advogado e o promotor Henri Wagner Vasconcelos me perguntaram, afirmando, inclusive, que o delegado divulgou na imprensa que havia pólvora na minha mão, digital na arma e que a balística era positiva, resultados esses desmentido pelos laudos.

Relatei, também, que o delegado escondeu essas informações do promotor Rogério Felipeto, designado pela Procuradoria-Geral de Justiça para acompanhar o caso, a meu pedido. Já no final do interrogatório, o promotor me perguntou três coisas: o que eu achava do delegado, profissionalmente, e se foi ele quem fez o depósito da arma na cena do crime. Respondi que tinha, até a morte de minha mulher, uma boa impressão do então delegado Edson Moreira (“que é um bom delegado, reforcei”), e que não foi possível desvendar quem foi o autor dessa façanha, completando que, caso soubesse disso, teria escrito no livro.

O promotor perguntou se eu não achava estranho a polícia colocar a arma na cena do crime e pedir o exame de balística. Respondi que havia duas hipóteses para o caso: ou Moreira sabia da armação preparada para me colocar na cadeia ou foi usado por esse grupo, sem saber de nada, inclusive que a arma fora colocada na cena do crime (o delegado foi designado para investigar o caso dia 12 de dezembro, dois dias após o crime, mesmo dia da localização surpreendente do revólver calibre 38).

O que importa

Pois bem. Isso foi o que eu disse. Infelizmente, boa parte dos veículos valorizou duas informações em detrimento das demais que nem citadas foram, ambas favoráveis à acusação: a de que eu chamara o delegado de competente e que, segundo disse (sic), ele, o delegado, não tivera culpa sobre os erros cometidos no inquérito. A TV Alterosa, afiliada do SBT em Belo Horizonte, por exemplo, deu essa notícia em primeira mão, logo após o meu depoimento: “Arrolado pela defesa de Bola, José Cleves disse que Edson Moreira é um bom delegado e que não teve culpa nos erros cometidos no seu caso.”

A mesma notícia foi repetida por vários veículos de comunicação, numa forma simplista de fechar a reportagem da maneira mais conveniente possível. Foram partidários, quando deveriam ser neutros, e isso é gravíssimo em nossa profissão. Alguém pode arguir pressa (no caso das TVs), mas jornalismo ao vivo é isso mesmo, o repórter tem que ter muita atenção e discernimento.

Foi, na verdade, um verdadeiro coice no interesse público, por falta de critério jornalístico e discernimento, porque o mais importante no meu depoimento é a parte acusatória – o fato, por exemplo, de eu ter dito que o delegado escondeu laudos do promotor, mentiu à imprensa sobre resultados de laudos e rubricou provas imorais do inquérito, sem qualquer questionamento sobre a grotesca montagem fotográfica da arma sobre o misterioso pano preto. Eu disse que a tal luva desapareceu do processo e ninguém levou em consideração essa violação dos autos. Falei sobre várias outras coisas importantes, mas o que interessou a estes jornalistas foram as palavras que melhor soavam aos seus ouvidos. Será que o fato de eu dizer que não sei quem fez o depósito da arma é mais importante do que este depósito? Será que o fato de eu considerar o delegado um profissional competente, é o suficiente para tirar a sua responsabilidade sobre as fraudes assinadas por ele no inquérito? Ou será que a capacidade cognitiva de uma pessoa sobrepõe-se ao caráter, ou seja, não importa o dolo e a má (ou boa) fé, o que importa é que o indivíduo é competente, e isso basta.

Erros de informação

Como se sabe, o conhecimento e a experiência, fatores qualificadores de qualquer profissional, podem ser utilizados para o bem ou para o mal, sendo a inteligência um traço característico dos piores bandidos desse planeta. Um jornalista competente pode, por exemplo, pelo ardil peculiar aos asnos da informação, produzir textos conforme a sua conveniência, de forma quase imperceptível, sou testemunho desse tipo de manobra em nosso meio.

Mas, além dessas falhas de fundamento do jornalismo, tivemos erros absurdos de informações, um deles, o mais brutal, foi praticado pelo G1/MG (Globo), conforme pode ser comprovado no linkhttps://g1.globo.com/minas-gerais/julgamento-do-caso-eliza-samudio/n...

Diz a reportagem num dos trechos:

“A testemunha afirmou também que cinco dias antes do assassinato da mulher foi assaltado e o revólver dele foi roubado, e colocado próximo ao local do crime, dois dias depois. Segundo as investigações, foi a arma usada para matar a vítima.”

Meu Deus, onde a repórter Sara Antunes arrumou essa aberração? Se isso fosse verdade, eu era hoje um homem condenado de forma inapelável. Meu revólver roubado? Nada foi escrito, registrado, falado e ouvido sobre tal absurdo. A arma em questão pertencia a um militar que disse nos autos tê-la vendido a uma pessoa, sob minha encomenda, porém sem qualquer prova dessa negociação mentirosa. Está farsa já foi desfeita, desmoralizada e imortalizada em livro, portanto, já era. Já a versão reportada pela referida jornalista, não passa de uma quimera, algo inadmissível a um profissional da área de comunicação.

A conclusão que tiro de tudo isso é de que a imprensa não está preparada para o jornalismo online, em tempo real.

 

Março/2013

Repórter assassinado sabia de corrupção na polícia

Por José Cleves em 12/03/2013 na edição 737

Continua cercado de mistério o assassinato do jornalista mineiro Rodrigo Neto de Faria, de 38 anos, executado a tiros no dia 8 de março em Ipatinga, a 220 km de Belo Horizonte, na região do Vale do Aço. Rodrigo saía de um churrasquinho pouco depois da meia-noite quando foi cercado por dois homens utilizando uma moto. Aquele que estava na garupa sacou um revólver calibre 38 e o descarregou no repórter, que foi atingido na cabeça, peito e costas. Morreu a caminho do hospital.

Rodrigo era casado e tinha um filho. A família garante que ele não tinha inimigos fora do trabalho – era apresentador de um programa policial na Rádio Vanguardae repórter do jornalO Vale do Aço,daquela cidade –, mas a Comissão de Direitos Humanos (CDH) da Assembleia Legislativa de MG revela que o repórter sabia de suposto envolvimento da polícia com grupos de justiceiros na região. Os criminosos não foram identificados e a polícia está à caça de motivação para o crime.

A polícia deverá ouvir nas próximas horas pelo menos duas testemunhas que presenciaram o crime, entre as quais um amigo do repórter que conversava com ele quando os criminosos chegaram. Ouvida pela reportagem do jornal O Vale do Aço, essa testemunha, que não quis se identificar, revelou que os criminosos aguardaram Rodrigo se despedir do dono do churrasquinho e se dirigir para o carro. “Ele (Rodrigo) desativou o alarme do veículo e abriu a porta. Foi quando vi a moto se aproximando. Achei estranho e até pensei que fosse uma brincadeira de algum amigo, uma brincadeira muito sem graça. Só esta cena já me assustou. Eu estava na frente do carro quando vi o carona sacar a arma, preta, com a coronha de madeira. Eles nem desceram da moto, só o piloto apoiou o pé no chão”, contou.

Militares por perto

Nesse instante, o amigo do repórter diz que pulou para se esconder atrás do carro, entre a calçada e o veículo, já que também estava na linha de tiro. “Enquanto caía, vi o fogo do primeiro tiro. Depois não vi mais nada, só queria me esconder. Quando me levantei não sabia se os caras na moto tinham ido embora ou não. Só abri a porta do carona e vi o Rodrigo caído dentro do carro. Coloquei a mão sob a cabeça dele e senti o sangue quente. Uma parte do miolo da cabeça estava para fora. Não imaginava que fosse possível ele sobreviver àquilo”, relatou.

Um homem, que estava a aproximadamente 40 metros do carro em que Rodrigo foi baleado, viu toda a cena do crime e deverá também ser ouvido pela polícia, que não tem como produzir o retrato falado dos criminosos, pois eles estavam de capacetes. A polícia está pesquisando se a cena do crime foi gravada por alguma câmera de segurança do comércio local.

Outro dado importante fornecido pelas testemunhas é de que os criminosos somente demoraram a agir porque havia militares por perto quando o repórter estava no Churrasquinho do Baiano, cujo proprietário também deverá ser ouvido. Baiano ajudou a socorrer a vítima que frequentava o seu estabelecimento com frequência e essa rotina, segundo a polícia, pode ter colaborado para o planejamento do crime.

12 assassinatos em 14 meses

Em nota à imprensa, o governador de Minas, Antônio Anastasia, e o Sindicato dos Jornalistas Profissionais lamentaram a morte do jornalista. O governador garantiu que a Polícia Civil não vai mediar esforços para esclarecer a autoria do crime. Já o sindicato atribuiu o crime a “mais um atentado contra a liberdade de imprensa”. O presidente da CDH, deputado Durval Ângelo, também cobrou urgência nas investigações do crime.

O parlamentar disse que recebera denúncias do jornalista sobre o suposto envolvimento de policiais em crimes conhecidos na região. Entre os denunciados estão militares do 14º BPM, aquartelado em Ipatinga, que teriam participação em chacinas.

A execução do repórter no interior de Minas dispara o alerta vermelho da categoria e dos organismos de defesa da liberdade de imprensa e dos direitos humanos no Brasil. Afinal, este é o primeiro jornalista brasileiro a ser executado em 2013, o 12º nos últimos 14 meses e o dobro de óbitos dos últimos quatro anos. O total de jornalistas assassinados desde 2008 no Brasil chega a 23, segundo dados da Campanha Emblema para a Imprensa (PEC, na sigla em inglês), que defende mais proteção a jornalistas em locais de risco.

Lista de vítimas no Brasil

Diz a entidade, com sede em Genebra, que 2012 marcou um número recorde de assassinatos de jornalistas pelo mundo. No total, foram 139 mortes, em 29 países. O número mundial é 30% superior ao de 2011 e representa cerca de duas vítimas a cada semana. Na avaliação da entidade, este foi o ano mais sangrento para os jornalistas desde a Segunda Guerra Mundial. Em cinco anos, foram 569 jornalistas assassinados no mundo. Filipinas e México lideram a tabela.

O conflito na Síria pesou na conta geral. Pelo menos 36 jornalistas foram mortos no país, que vive uma guerra civil. Desses, 13 eram estrangeiros. Na Somália, o número chegou a 19. Já no Paquistão, 12 jornalistas perderam suas vidas. O México, em meio a uma guerra contra o narcotráfico, se iguala aos números do Brasil.

A lista de vítimas no país (sem o nome de Rodrigo Neto) inclui os jornalistas Eduardo Carvalho (Última Hora, MS), Luis Henrique Georges e Paulo Roberto Cardoso Rodrigues (Jornal da Praça, MT), Anderson Leandro da Silva (Quem TV, PR), Edmilson de Souza (Rádio Princesa da Serra FM, SE), Valerio Luiz de Oliveira (Rádio Jornal 8820 AM, GO), Decio Sá (O Estado do Maranhão, MA), Divino Aparecido Carvalho (Rádio Cultura AM, PR), Onei de Moura (Costa Oeste, PR), Mario Randolfo Marques Lopes (Vassouras na Net, RJ) e Laecio de Souza (Rádio Sucesso FM, BA). As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Os arquivos e os segredos da ditadura

Por José Cleves em 12/03/2013 na edição 737

Muito boa a reportagem da Folha de S.Paulo sobre os arquivos da ditadura retidos pelo governo. Mandou bem o jornal ao tentar revelar os segredos dos milicos, parte deles ainda enterrados em cova rasa. Aliás, o acordo feito pelos militares com os civis para entregar o poder, em 1985, incluía exatamente a guarda, por um período não definido (ad eternum, imagino), dos arquivos da repressão com os carimbos ultra-secreto, secreto, sigilosos, reservado e confidencial. Documentos que tivessem um destes carimbos deveriam ser mantidos fora do alcance da imprensa para que o segredo do sistema não fosse revelado.

Não foi à toa que os milicos impuseram a eleição indireta do primeiro presidente civil. Eles queriam ganhar tempo. Se a emenda das Diretas Já, de Dante de Oliveira, tivesse passado no Congresso, os generais de linha dura não entregariam o poder sem disparo de armas. Tancredo Neves e Ulysses Guimarães sabiam disso, mas estavam convictos de que o processo de transição já havia sido acertado com a tropa do general Ernesto Geisel, que governou o país (1974-1979) e iniciou o processo de abertura política. O presidente João Baptista de Figueiredo (1980-1984), portanto, teria que entregar a faixa na marra, é o que pensavam.

Eu não tinha certeza absoluta disso. Vivi intensamente esse período em Brasília, a partir de depoimentos segredados de homens que faziam parte da comunidade mantida pelo Serviço Nacional de Informação (SNI), então chefiado pelo general Otávio de Aguiar Medeiros, que pretendia ser o candidato dos milicos na eleição indireta. Ou seja, o plano dos generais previa que as cinco divisas do Exército continuariam no poder por mais um mandato. O suficiente para destruírem todos os arquivos e redigirem uma nova Constituição ao modo deles (se é que haveria outra Constituição, talvez continuássemos com a mesma, modificada para pior).

Urânio para o Oriente Médio

A candidatura de Otávio de Medeiros somente não foi adiante por causa do assassinato do jornalista Alexandre von Baumgarten, ocorrido em 1982. Baumgarten, a mulher e um barqueiro foram sequestrados na Praça XV, no Rio de Janeiro, e executados em alto mar. O crime envolvia o general Newton Cruz, do Comando Militar do Planalto e braço direito de Medeiros. Foi Cruz que expulsou Baumgarten da comunidade de informações do SNI, em janeiro de 1981, por suspeita de trapaça. Baumgarten adquiriu o título da antiga revista O Cruzeiro (1928-1975), anos após o seu fechamento, e passou a utilizar verbas do governo para divulgar o nome de Medeiros com vistas à sucessão de Figueiredo, em eleição garantida pelas Forças Armadas como indiretas.

Os homens de Cruz, com a ajuda do dono de um jornal também a serviço dos milicos, fizeram campana na gráfica da revista e descobriram, através das bobinas consumidas, que o jornalista estava mentindo para o SNI sobre a tiragem do semanário e o expulsaram do sistema. Magoado, Baumgarten fez um dossiê que incluía a verdade sobre o atentado do Rio Centro e várias outras informações secretas, muitas delas não reveladas até hoje porque parte do dossiê desapareceu.

Um elemento de dentro do SNI informou-me, com extrema segurança, parte do dossiê não revelado de Baumgarten sobre a remessa de urânio para o Iraque, com a finalidade de reaquecer os reatores nucleares do presidente Saddam Hussein, que assumiu a presidência de seu país de 1979 com apoio dos Estados Unidos que, ironicamente, o arrancou do poder em 2003 (por causa do atentado às torres gêmeas em 11 de setembro de 2001). Condenado à morte pela justiça iraquiana, Saddam foi enforcado em 2006, pelas atrocidades praticadas pelo seu governo.

Armas para a Líbia

Aliás, boa parte dessas informações sobre a remessa de armas e material estratégico (urânio, principalmente) pelo regime militar brasileiro ao Oriente Médio nas décadas de 1970 e início de 80 é revelada no meu livro Distrito Zero (Maza Edições: 2000). Parte do material extraído é do dossiê de Baumgarten e a outra metade fornecida pelo informante que tinha trânsito livre no Exército. Muitos desses segredos que obtive à boca pequena continuam até hoje escondidos em alguma parte do governo por conta dessa dificuldade anômala que o Brasil tem para abrir a caixa preta da repressão.

A verdade é que os organismos internacionais estavam, no final da década de 70 e início de 80, de olho nesse comércio de armas entre Brasil e alguns países do Oriente Médio. Primeiro, foi o contrato assinado em 1981 entre a empresa Engesa, de São José dos Campos, SP, e o governo iraquiano, para o fornecimento de veículos blindados às Forças Armadas daquele país. O contrato, no valor de US$ 250 milhões, previa o fornecimento de tanques Urutu, equipados com canhões 90 mm, e do carro de transporte de tropas Jararaca, conforme revelou em 1982 a revista francesa Défense et Armement.

Constava ainda, no dossiê de Baumgarten, a venda ilegal de urânio extraído do Brasil para reabastecer os reatores nucleares iraquianos. Diziam os documentos que em 1982 o serviço de inteligência francês descobriu que o Brasil vinha exportando para a Líbia aviões de patrulha-marítima, várias baterias do sistema Astros-II e lançadores de foguetes de saturação, bombas antiaéreas e configurações modernas de blindados Cascavel EE-9. O fornecimento de armas a Trípoli somente foi interrompido com a apreensão de aviões líbios em Pernambuco, salvo erro, levando equipamentos bélicos para os sandinistas da Nicarágua.

Documentos destruídos

Para reforçar a veracidade dessas informações sobre a remessa de equipamentos bélicos pelos militares brasileiros ao Oriente Médio, tive acesso a documentos nunca revelados antes dando conta de que parte do urânio enviado ao exterior era retirado de uma mina em Olhos D’Água, na cidade de Nova Lima, na Grande Belo Horizonte (onde tenho hoje um jornal), e transportado para os Estados Unidos pelos empresários Wilson Gosling e Paulo Leite. Certa feita, um desses carregamentos foi apreendidos por ordem do então coronel Otávio de Medeiros, que comandava o 11º Regimento de Infantaria da 4ª Divisão de Exército, em Belo Horizonte, e despejado no pátio “para verificação”. Como ninguém no quartel sabia distinguir o que continha aquele “monte de areia”, o material foi jogado fora e tudo ficou por isso mesmo.

A verdade é que a imprensa levou um coice mortal dos milicos (e dos governos civis que vieram depois) com relação aos documentos da ditadura. O segredo já passou por cinco presidentes (José Sarney, Collor de Melo, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso (dois mandatos) e Lula (dois mandatos). Espero que de Dilma Rousseff não passe, ainda que tardiamente, porque os crimes praticados pela repressão durante o regime militar já prescreveram, mas o povo tem o direito de saber toda a verdade sobre os guardados da ditadura.

A Comissão da Verdade pode muito bem requisitar dos órgãos governamentais o que sobrou no fundo da gaveta dos milicos, já que a maior parte (e a mais importante) desses escritos foi destruída ou extraviada e/ou levado para a casa de algum torturador obcecado pelo seu conteúdo mórbido.

Fevereiro/2013

A imprensa oficialíssima

Por José Cleves em 12/02/2013 na edição 733

 Com a troca de governo na maioria das prefeituras do país, grande parte da imprensa também tem novos patrões. É prática antiga, principalmente no interior, os veículos de comunicação local sobreviverem das verbas, jabás e mimos oficiais em troca do silêncio. Em alguns casos, o dono vira até servidor público com cargo de confiança do prefeito. São elementos contratados para zelar pela imagem do mandatário, do seu CPF e de seus chegados, com o dinheiro do contribuinte. De quebra, seus veículos de comunicação são também agraciados com generosas verbas públicas. Alguns destes pseudojornalistas são incluídos na folha de pagamento da prefeitura para silenciá-los, sem qualquer outro favor.

Nada tenho contra jornalistas que prestam assessorias e/ou trabalham para o governo. Pelo contrário. A assessoria de imprensa é um nicho de mercado muito valorizado e respeitado. O dia em que decidir não mais mexer com jornal, vou tentar ser assessor também porque vivo do jornalismo e não sei fazer nada na vida além disso. Sou contra o dublê de assessor de imprensa e repórter ao mesmo tempo – um servindo ao rei e o outro tentando agradar os súditos – porque isso é impossível. Não dá para acender duas velas na nossa profissão. Ou servimos ao interesse público, que é a missão do jornalista que se dedica à reconstituição de fatos aleatórios, ou ao interesse privado.

Essa dualidade é muito ruim para a democracia. O mais revoltante é que a classe jornalística não fiscaliza nada e com isso permite que falsos formadores de opinião emplaquem, oficialmente, seu veículo de aluguel no governo. Tudo – CNPJ e CPF – sustentado pelo povo. O bom da democracia é a liberdade que a imprensa tem para fiscalizar e denunciar os desmandos no poder público. É missão dos veículos de comunicação tratar os detentores de cargos eletivos com olhar crítico de quem tem a obrigação de vigiar o dinheiro do contribuinte. Se isso não ocorre, por conta da imoralidade, para que serve então a liberdade de escrever e falar em nosso meio?

“Propriedade intelectual”

O jornalista tem o direito de expressar o livre pensamento, contra ou a favor, como ocorre com qualquer cidadão, porque este é um direito garantido no artigo 5º da CF (fato este que levou, inclusive, o STJ a não exigir mais o diploma para o exercício da profissão, exatamente por entender que qualquer cidadão pode escrever ou falar o que bem desejar neste país). Sem comentários.

É aquele negócio. Quem pode tudo não pode nada. O jornalista não pode, de jeito algum, omitir crimes ou abdicar de suas obrigações deontológicas – e uma delas, talvez a mais importante, é a de fiscalizar os homens públicos. Não se pode admitir, por exemplo, que o dono de um jornal altere o contrato social da empresa para prestar serviços ao governante, porém imbuído da condição tácita de proprietário do veículo que é gerido de forma a atender o interesse do agente público que o contratou.

Falo isso com conhecimento de causa. Não vou dar nomes porque essa é uma prática tão comum no Brasil que grande parte da imprensa, inclusive das capitais, costuma ter a sua “propriedade intelectual” alterada de quatro em quatro anos ou conforme a grana que entra no bolso. Tudo às escondidas, embora a maioria destes incestos seja de domínio público.

O bem e o mal

Durante muitos anos, o editor-geral do jornal Estado de Minas, dos Diários Associados, comandava a imprensa do governo local. Outro profissional assumia o seu lugar na Redação, mas era de araque. O cara fazia o jogo da empresa e do governo, formando opinião conforme a conveniência destes. Aliás, o governo sempre mandou no “jornal dos mineiros”, onde trabalhei vários anos e convivi com essa fraude que sempre combati. O mesmo sistema opera em outros grandes veículos de comunicação do país. As formas são variadas, mas o objetivo é o mesmo: servir ao rei em troca de dinheiro, escondendo e plantando notícias. Um crime.

Basta um olhar atento nas nossas principais publicações diárias e semanais para se notar que nem todo assunto é tratado de forma justa. Nem sempre prevalece a ideologia, o bom-senso, a verdade. É comum a imprensa escarafunchar um fato em busca de um resultado desejado e isso ocorre de forma brutal como os discursos demagógicos de políticos fisiologistas. Pergunto: como vamos combater a corrupção neste país se a imprensa não exerce o seu papel de fiscalizar os agentes públicos com responsabilidade? Como pode um país crescer e se desenvolver, como pediu a presidente Dilma Rousseff aos prefeitos, no encontro de Brasília, recentemente, se muitos deles não são vigiados pela imprensa de sua cidade?

Será que não basta a utilização da verba pública como moeda de compra da mídia? Felizmente, não são todos os veículos de comunicação que se prostituem. Menos mal. Conheço donos de jornais que se abastecem de generosas verbas oficiais, porém sem hipotecar a independência como garantia da oferta. Da mesma forma, conheço políticos justos e corajosos que não temem chantagens de picaretas, motivo pelo qual são, às vezes, perseguidos e injustiçados pelos maus profissionais da imprensa. É o preço da desarmonia entre o bem e o mal.

Faz parte

É certo que comunicação de massa é um ramo de negócio vulnerável, pouco lucrativo e difícil de ser tocado sem o apoio dos governantes. Os impressos, por exemplo, são onerosos. A matéria-prima é cara, a operacionalidade é complexa e a mão de obra é igual em qualquer negócio, muito cara devido aos custos sociais. Então, para manter o veículo, o dono tem que se virar nos trinta e ter, no mínimo, direito às verbas oficiais, até porque a grana existe para isso. É obrigação do prefeito divulgar os seus atos, informar a população sobre os eventos e fazer comunicados de interesse público. Para que isso seja feito, é necessário lançar mão da mídia local.

A mídia, portanto, exerce esse importante papel de divulgar os feitos da prefeitura, porém não deve nunca abrir mão da critica construtiva e omitir fatos de interesse da coletividade. Até entendo que um ou outro acontecimento deva ser ignorado, principalmente quando a ação é primária e inconvincente – e/ou partidária –, embora escandalosa e fundamentalmente apreciativa.

A missão do jornalista não é correr atrás de carniça. Infelizmente, 90% da demanda jornalística costumam ser de notícia ruim e isso ocorre por duas razões: primeiro, porque o mundo é feito de maldades e fatalidades, fatos esses que, na maioria dos casos, independem da ação direta do homem (as catástrofes, principalmente); segundo, porque o crime faz parte da natureza humana e a sua prática interessa à sociedade como um todo.

Obter informações e publicá-las

No Brasil, por exemplo, o crime de corrupção devasta os cofres públicos e cabe aos meios de comunicação torná-lo público. É missão do jornalista ficar de olho nos ocupantes de cargos públicos – prefeitos, vereadores, deputados, senadores, governadores e presidente da República. O repórter tem a obrigação de acompanhar os trabalhos legislativos e os atos do executivo, para melhor informar o público sobre os acontecimentos.

O jornalista somente é desobrigado a fazer isso quando está revestido da condição de assessor de imprensa. O profissional dessa área presta serviços à pessoa física, governo ou empresa, sem qualquer compromisso com o interesse público. Neste caso, vale o produto que ele defende. Já o que reconstitui fatos aleatórios serve ao interesse público e deve agir com equidade e isenção para não enganar a opinião pública. Se o que escreve é impublicável para o dono do veículo, por razões comerciais ou conflito de pensamento, cabe ao patrão jogar tudo no lixo. Afinal, a empresa é dele. O repórter segue a sua vida cumprindo o seu dever, sem que alguém possa impedi-lo de obter informações e de procurar espaços para publicá-las.

Essa é a nossa missão.

Dezembro/2012

Jornalista não investiga jornalista

Por José Cleves em 04/12/2012 na edição 723

Deveria fazer parte do Código de Ética do jornalista a obrigação de investigar o desvio de conduta de algum colega metido em corrupção para compreender melhor os fatos e prevenir a categoria deste mal que assola o país. Até porque não temos um controle interno da classe, fato esse que coloca bons e maus profissionais no mesmo balaio.

Quem prega a moralidade no país – e tem a obrigação de fazer isso –, teria que zelar pelo bom nome da classe. É o mínimo que se pode exigir dos jornalistas que, ao contrário dos médicos, engenheiros, advogados e tantas outras categorias, são desprovidos de um conselho disciplinar. Não temos, às vezes, nem o cuidado de denunciar a prática do baixo jornalismo – e, muito menos, de criticá-lo individualmente, com raras exceções. Uma delas é este espaço do Observatório da Imprensa, o qual tenho a honra de eventualmente ocupar.

Nenhuma de nossas instituições de classe (sindicatos, federação, associações) se manifesta quando um jornalista é preso ou acusado de extorsão, por exemplo. Normalmente, essas entidades soltam notas quando o jornalista aparece como vítima de algum crime de imprensa. O autocontrole permite a apuração dentro dos critérios profissionais e o resultado desse procedimento administrativo pode apontar culpa ou inocência do investigado. Portanto, a sua finalidade não é meramente punitiva, mas acima de tudo esclarecedora e benéfica para a classe e a sociedade.

Políticos e empresários

Essa reflexão serve para ilustrar a prisão do jornalista e blogueiro pernambucano Ricardo Antunes, acusado de prática de extorsão contra um marqueteiro em Recife, através de seu blog Leitura Crítica. O único registro que se tem do fato é o policial, sem qualquer posicionamento da categoria. A imprensa convencional limitou-se ao registro sucinto do fato, o qual foi ignorado pela classe, que não se manifestou de forma corporativa, seja através de notas de repúdio ou de esclarecimento à sociedade. Se fosse um advogado, que divide com os jornalistas a missão de defender os direitos civis da categoria e do cidadão, a OAB já estaria investigando o caso, da mesma forma ocorreria com o Conselho Regional de Medicina (CRM), que independe de denúncias formais para investigar o profissional acusado de má conduta.

Não vou entrar no mérito da acusação por desconhecer a versão de Antunes. Como se sabe, vítima e acusado em capa de inquérito são posições sujeitas a inversões em processos criminais e até mesmo em sentenças, de modo que a ordem desses fatores varia conforme o fato, e não o seu relato abstrato.

Antunes é apenas um entre os muitos jornalistas acusados de extorsão neste país, com a diferença de que ele foi preso. Não são apenas os pequenos que agem assim. Os grandes veículos de comunicação extorquem políticos e empresários – não é de hoje. Assis Chateaubriand (1892-1968) criou o seu império fazendo isso. A maioria dos jornais do interior age dessa forma. Tropeço todo dia em jornalista desonesto, que usa os adjetivos conforme a grana que coloca no bolso.

Esperteza profissional

Sobre Ricardo Antunes, posso falar um pouco mais. Ele foi meu repórter na década de 1980, no antigo jornal Última Hora de Brasília, onde eu era editor de polícia. Foi o seu primeiro emprego. Ele tinha uma boa capacidade cognitiva, mas era burocrático. Tão desinteressado que o apelidei de Meia Lauda, pela improdutividade quase total. Encerrava qualquer assunto em 10 ou 15 linhas, não pela concisão do texto, mas por total falta de interesse. Dei conselhos, tentei endireitá-lo, mas não teve jeito.

Até que pedi a sua demissão ao editor-geral Walmir Botelho (hoje editor de O Liberal, do Pará). A contragosto, porque ele me era simpático. Aparentava ter um ótimo caráter. Botelho levou o meu pedido na brincadeira, como uma velha raposa disposta a proteger os seus filhotes. Em parte, tinha razão. O jornal pagava mal e eu deveria ter mais paciência com o incorrigível Meia Lauda, mas ele me aporrinhou tanto que foi embora do jornal.

Surpreendi-me, no entanto, quando o meu amigo Gervásio Gonçalves Filho, dono da Rádio Regional de Brasília, informou-me de sua prisão com o fôlego de quem estava dando uma notícia a quem não levava fé no rapaz desde o início de sua carreira. Corrijo: não acreditava no repórter naquele momento, mas de sua esperteza nunca tive dúvida – e esperteza profissional é um elemento dúbio de várias interpretações.

Crítica não pode ser moeda de negociação

Conto essa história e invoco a nossa triste falta de controle interno da profissão para chamar a atenção dos futuros jornalistas, que se formam sem qualquer aptidão para tal, às vezes com a falsa ideia de que poderão obter sucesso e dinheiro sem esforço, o que é uma mentira. Jornalismo é puro conflito, jogo bruto, pesado demais para quem não quer aporrinhação na vida.

Não temos o direito de explorar a vida alheia, como se a honra das pessoas dependesse de uma negociação jornalística. Toda critica, denúncia e acusação devem ser feitas com base no interesse público, sem qualquer retorno financeiro extra para o autor da matéria, a não ser o fato de credenciá-lo ainda mais a exercer o jornalismo critico com a autoridade de quem não está atuando em causa própria.

Costumo dizer que o carma do repórter é fazer inimizade e enriquecer o patrão. Quanto mais sério e justo é o jornalista, mais credibilidade ganha a empresa onde trabalha, gerando dividendos para o proprietário que – salvo algumas exceções – infelizmente usa esse crédito como uma moeda de negociação para ganhar dinheiro e poder junto aos seus parceiros políticos e comerciais. Funciona assim em qualquer canto do mundo, independentemente do tamanho do veículo.

Primeiro, arrumar a casa

Portanto, já passou da hora de criarmos um Conselho Federal de Jornalismo para o controle interno da profissão, sob pena de sermos obrigados a admitir que, da mesma forma que polícia não prende polícia (e político faz vistas grossas para seu páreo corrupto), jornalista também não investiga jornalista e ponto final. Se alguém quiser denunciar algum jornalista corrupto, tem que ligar para a polícia, como ocorreu no caso de Ricardo Antunes, pois a categoria simplesmente não tem um órgão de correição.

Se quisermos moralizar este país, tão criticado por nós, temos primeiro que arrumar a nossa casa, fiscalizar a nossa atividade, punir os maus elementos, sufocar os picaretas e, se necessário, cassar os seus registros profissionais. Tem que ser assim.

 

 

A imprensa trágica e pouco informativa

Por José Cleves em 21/02/2012 na edição 682

 Tenho birra de jornalista que encerra a reportagem com base naquilo que foi divulgado oficialmente, mesmo quando o assunto foge à normalidade. Tivemos, dias atrás, um caso raríssimo em Belo Horizonte, uma tragédia shakespeariana que, se não fosse a abundância de provas de sua concepção, entraria para a história como um dos crimes mais cabulosos e misteriosos do estado. Ainda assim, o caso teve um tratamento factual, sem que houvesse, por parte da imprensa, uma abordagem mais aprofundada sobre a causa deste fato raro na literatura criminal.

O gerente de uma locadora de veículos (que os jornalistas insistem em chamar de empresário), Djalma Brugnara, 49 anos, matou a procuradora federal, Ana Alice Moreira, de 35anos, e se matou a seguir, picando o corpo com uma faca até cravá-la no peito – algo raríssimo na literatura criminal e, por essa razão, digno de registro para estudos criminológicos, antropológicos, sociológicos e psicanalíticos, sobre os limites da mente humana. Se Émile Durkheim (1858-1917) estivesse vivo, ele, que foi um dos pais da sociologia moderna e um estudioso do autoextermínio (Suicídio, 1987), certamente faria um tratado sobre o assunto.

Não sou um durkheimiano qualquer. Estudei as obras deste francês à exaustão; não apenas as dele, como também as de vários outros iluministas da época – o próprio Freud que, como ele, obcecou-se por outro assunto complexo para a ocasião – a sexualidade – e tirou disso um bom proveito para a evolução da humanidade. A questão do suicídio, que é um dos tabus da sociedade moderna – e da imprensa –, merece um estudo que vai além das formalidades policialescas e jornalísticas.

Babá e dois filhos testemunharam

Digamos, pois, que tais fatos devam ser analisados dentro de um contexto individual, e não coletivo. No caso ocorrido em Belo Horizonte, envolvendo personagens da alta sociedade – ele, de família tradicional, um bon vivant, aparentemente sem maiores problemas, e ela uma jovem mulher bem-sucedida, ambos vivendo, há anos, numa mansão de luxo em um condomínios da região metropolitana, onde gozavam de conforto, privacidade e segurança.

O casal tinha dois filhos e uma vida aparentemente pacata, mas marcada pelo ciúme. Começaram as brigas e ameaças até que, no dia 25 de janeiro, Alice resolveu dar queixa do marido na polícia. Ainda assim, continuaram vivendo sob o mesmo teto até que no dia 1º de fevereiro a procuradora foi assassinada por volta das 4h pelo marido, que enfiou-lhe várias facadas no peito, no quarto do casal.

O crime foi testemunhado em outro cômodo fechado, pela babá e os dois filhos do casal – de sete e três anos que, naturalmente, já estavam acostumados com as brigas. Djalma fugiu no seu carro, andou poucos quilômetros e entrou em um motel à margem da BR 356, onde ocupou a suíte de número 16 e foi encontrado morto quase 20h depois.

Crime passional ou loucura?

Pelos levantamentos periciais divulgados extra-oficialmente, o corpo apresentava 28 perfurações à faca – cinco deles mais profundos: dois nas virilhas, dois no pescoço e um no peito. À primeira vista, tudo leva a crer que ele se autoflagelou, picando o corpo em busca das veias femorais e do pescoço para se matar e, não obtendo êxito, apunhalou o peito, tendo morte agonizante e em horário não presumível – o corpo foi encontrado já em estado rígido, não permitindo aos legislas determinar a hora de sua morte.

Crime passional? Não sabemos, embora seja este o tratamento dado ao caso pela imprensa, mas segundo o próprio William Shakespeare, ao definir os chamados crimes de sangue, o homicida passional é movido por amor e ódio – e não pelo dinheiro ou poder – e nem sempre pela loucura, como ele ilustrou em suas magníficas obras OteloMacbeth e Hamlet, uma verdadeira descrição psicológica da arte ocidental sobre estas três modalidades de criminosos.

No primeiro caso, Shakespeare relata um crime passional (Otelo matou a mulher por um ciúme doentio e depois se matou com a mesma faca); em Macbeth, que destronou e matou o rei da Escócia, foi pela volúpia do poder e do dinheiro; e em Hamlet foi um ato de loucura, conforme gritou o personagem para a plateia após matar o enganado Polonius, que ele imaginava ser o seu tio (que caçava por ter matado o seu pai): “Não foi Hamlet que matou; foi a sua loucura”).

A função de prevenir

O que eu quero, com isso, é tirar a dúvida do leitor sobre o que de fato levou Brugnara a matar Alice: se foi pelo dinheiro (não há registros, nas reportagens que li, sobre as reais condições financeiras do criminoso), se foi por amor e ódio, mais provavelmente por ódio, pois não acredito na pessoa que mata por amor – quem ama não mata, é o que penso – e/ou por loucura, porque o público não foi informado direito sobre a personalidade do criminoso – se ele era, de fato, um homem violento, brigão, destemperado, com episódios de loucura em sua vida cotidiana etc.

A única coisa que sabemos, mesmo à distância dos laudos, é que ele se penitenciou de forma extremamente violenta, ao picar o corpo com a faca, de forma agonizante, em um ato de loucura repentina que merece estudos pela raridade deste gesto. Eu, por exemplo, que tenho 40 anos de jornalismo a céu aberto e que já vi e li quase de tudo neste mundo (depois do 11 de setembro, ninguém pode duvidar de mais nada), garanto que este tipo de crime é atípico mesmo nas tragédias gregas, fartas em relatos do mundo cão, como a incestuosa, fraticida e infanticida Medea, que inspirou Eurípedes, e Fedra, também imortalizada por seus escritos, pela crueldade descabida.

Faço essas reflexões para despertar, na sociedade, uma prevenção coletiva contra pessoas de sentimentos exagerados, dentro daquele princípio de que, mesmo nas tragédias, tiramos alguma coisa de proveito, que é o exemplo. E, para que esta análise seja possível, é necessário que a imprensa, que tem a responsabilidade de retratar fatos com fidelidade, exerça o seu papel de informar bem a sociedade sobre as impurezas da mene humana. As obras de Shakespeare, por exemplo, tinham essa finalidade, em uma época em que a melhor forma de se comunicar com o povo era através da arte cênica. Esta é a grande contribuição que o teatro deu e vem dando à ciência, ao reproduzir episódios da vida cotidiana como, aliás, fez o dramaturgo Nélson Rodrigues, em A vida com ela é.

O que não pode a imprensa fazer é dar a fatos desta relevância um tratamento comum, banal, cotidiano, registrando-os nos limites das formalidades policialescas e jornalísticas. Ora, repórter que se preze tem que esmiuçar os fatos e estudá-los para informar o público com mais qualidade. O jornalista cubano Ricardo Cardec escreve que as generalidades servem para obscurecer os fatos. Portanto, quando contextualizamos uma notícia de forma genérica, inespecífica, pouco explicativa, deixamos muitas dúvidas a serem dirimidas pelo leitor e isso faz um mal muito grande a ele porque o objetivo dos meios de comunicação é dissecar fatos quando estes exigem reflexões que vão além de seu registro sucinto.

***

[José Cleves é jornalista, Belo Horizonte, MG]

 

 

Março/2012

A imprensa e a eterna mentira

Por José Cleves em 20/03/2012 na edição 686

 

Causa polêmica em Minas a denúncia de que o governo vem escondendo os verdadeiros números da violência no estado. Nada de novo para mim e tantos outros que dormem com um olho no peixe e outro no gato. Em 1998, denunciei isso no jornal Estado de Minas. A manchete foi: “Minas esconde os números da criminalidade”. Registrei a fraude no meu livro A Justiça dos Lobos, em 2009 (p.35). Descobri, por exemplo, que a PM anunciava em setembro daquele ano uma média de 10 assaltos/dia, contra 24 anotados no seu relatório reservado. O Ministério da Justiça confirmou a manobra.

O curioso é que, 14 anos depois, a imprensa descobre que está sendo enganada. Pior é que os graúdos dessas corporações fazem isso para manterem no cargo políticos vagabundos que vivem à custa de números generosos de sua administração. Todo jornalista sabe que os políticos agem assim. Quando o assunto é criminalidade, o governo empurrar os números para baixo. Na ditadura era a mesma coisa. Os generais escondiam a verdade para sobreviverem da mentira.

O sistema matava e falava que era suicídio ou acidente (caso Vladimir Herzog, Alexandre Van Baumgarten – executado com um tiro na cabeça e caso dado como afogamento; depois trocaram o corpo e mandaram outro para o velório etc.). Havia casos mais escabrosos ainda. Durante o reinado dos Homens de Ouro no Rio, na década de 1970, a polícia registrava como disparo acidental (ou legítima defesa) uma execução com 100 ou mais tiros. Era fácil isso porque vivíamos um regime de exceção. No regime vigente, de democracia ampla, o cara tem que se virar nos trinta para enganar os outros, mas estatisticamente falando, nada é impossível.

Traído pela mentira

Aliás, toda estatística política é dúbia, de modo a permitir um duplo sentido, algo parecido com horóscopo. As pegadinhas desses números mágicos, ainda que contenham questões primárias, fisgam até os mais céticos. Exemplo: se um restaurante fornece 50 marmitas para 50 operários, cada um comeu uma marmita. Ou uma dezena passou fome porque é possível um cara comer cinco marmitas (ou dez comerem três ou mais cada) e deixar um punhado de companheiros chupando dedo.

É por essas e outras razões que nunca acreditei nos registros oficiais quando há interesse político sobre os mesmos. Infelizmente, a maioria dos jornalistas acha mais confortável copiar o que dizem as autoridades a ter que questioná-las ou criticá-las pela inconveniência do conflito. No caso dos números mentirosos revelados pelo governo de Minas, o menos culpado nisso tudo é o policial de rua, que rala para combater a bandidagem mas é traído pela mentira, em detrimento de uma política austera de combate ao tráfico de drogas, por exemplo.

Solução pela estatística

Brizola já dizia: droga é um artigo de importação que deve ser reprimido na fronteira. Se deixar entrar, paciência. Não será a polícia estadual que vai fazer a diferença nesta relação mercantil entre a oferta e a procura. Enquanto não houver uma repressão eficiente na fronteira para evitar a entrada da droga no país, esse produto do capeta continuará sendo cotado pela lei da oferta e da procura. Não há outro jeito. Para se combater isso, com as fronteiras escancaradas, teríamos que reduzir a procura, o que somente seria possível com um trabalho sério de conscientização e de tratamento dos dependentes químicos, mas esse é o lado mais complexo dessa relação de mercado. Melhor seria começar pelo fechamento da porteira.

Ocorre que na cabeça de determinados degenerados inferiores (era assim que os antropólogos, sociólogos e psicólogos do século 19 classificavam os pouco inteligentes) com poder de mando neste país, é mais fácil resolver o problema pela estatística. No lugar de colocar 30 assassinatos em 30 dias, muda-se para 15 assassinatos e 15 encontros de cadáver em um mês e troca-se um crime por dia por um a cada dois dias, enfiando-se isso goela abaixo da imprensa e ponto final.

Maio/2012

Nos caminhos de Cachoeira

Por José Cleves em 08/05/2012 na edição 693

 

A título de esclarecimento, já que a imprensa fragmenta tanto os noticiários que às vezes perde o fio da meada, vai aqui um depoimento inédito, que julgo importante, sobre o imbróglio de Carlinhos Cachoeira. No início de 2000, fui convidado pelo ex-diretor operacional da extinta Loteria do Estado de Minas Gerais (Lemg), Mário Márcio Magalhães (tio do deputado estadual Alencar da Silveira, PDT/MG), a escrever um livro sobre o jogo de azar no Brasil. Seria uma obra que defendesse a legalização do jogo. Pelo serviço deghost writer (escritor fantasma), receberia algo em torno de R$ 75 mil. Combinamos que o título seria O jogo da verdade – A fantástica e milionária indústria do jogo e a hipocrisia da lei que o proíbe no Brasil há mais de meio século.

Elaborei o material com base em pesquisas e entrevistas com empresários do setor e contraventores do jogo do bicho. Procurei em Brasília o senador Romero Jucá, então relator da Comissão de Assuntos Sociais – onde estava o projeto que pedia a legalização do jogo de azar no Brasil – para adiantar o seu parecer sobre a matéria e convidá-lo a fazer a orelha do livro. Conheci o senador durante minha passagem como repórter pelo Congresso Nacional e conhecia a sua posição favorável à liberação dos jogos de azar no país. Jucá nos adiantou o seu parecer favorável e aceitou fazer a orelha do livro, na presença de Mário Márcio Magalhães.

O livro estava praticamente pronto quando fui informado que, reunidas em Londres durante um encontro entre os maiores fabricantes de máquinas para bingos do mundo (do qual Mário Márcio Magalhães participou), as empresas até então interessadas na aprovação do projeto de legalização da jogatina no Brasil mudaram a estratégia e não queriam mais o livro. Pelo que entendi, temiam a resistência do governo, que não queria perder os ovos de ouro da Caixa Econômica Federal para o mercado privado e abortaram a ideia de defender a liberação do jogo. Basta dizer que os oito jogos do portfólio da Caixa renderam, em 2001, a bagatela de R$ 2,8 bilhões.

A Cirsa e Cachoeira

Diante dessas gigantescas cifras da Caixa com os jogos, os contraventores acharam melhor continuar pagando propina a políticos e policiais para manterem os seus negócios errados – mas livres de impostos – do que correrem o risco de conseguir a legalização do jogo e não aguentar sobreviver na legalidade. Viraram uma espécie de contraventores residuais, aqueles que não se adaptam mais ao mundo dos negócios legais, sujeitos a regras, fiscalizações rigorosas, impostos altos e os demais ônus do mercado empresarial lícito.

Essa era a dura realidade do setor privado de jogos de azar no país diante da possibilidade de o jogo ser liberado porque o governo compensaria a perda da exclusividade da Caixa para explorar o seu portfólio com uma carga de impostos insuportável. Fora as regras do jogo que seriam curtas e exigentes o bastante para impedir, por exemplo, que conhecidos contraventores participassem do bolo.

Entre as empresas com poder de decisão sobre a viabilidade ou não do livro, estava a gigante espanhola LG Cirsa Corporation (com um faturamento anual de US$1,5 bilhão). A Cirsa, comandada no Brasil por Dario Javier, tinha negócios em Goiás com a Gerplan, em sociedade com Carlinhos Cachoeira. A Gerplan pertencia à Jogobrás do Brasil que assumira, dois anos antes, sem licitação, os interesses da Ivisa Lotérica, que tinha um contrato com a Loteria Mineira – também sem licitação – para explorar a Sorteca (obingo eletrônico) que não certo.

Um cano histórico

Saía a Ivisa, que entrou no esquema com inexigibilidade de licitação, e entrava a meio espanhola Jogobrás em seu lugar, de olho nos quase 40 mil máquinas de caça-níqueis existentes no estado. Importada da China, a maquininha custava em torno de R$ 2 mil e poderia render ao dono uma média de R$ 500 reais por semana ou mais, dependendo o local de sua instalação. Um negócio realmente extraordinário. A Lemg editou a Resolução 25/99 regulamentando a Vídeo Loteria Off-line Interativa do Sistema de Concursos de Prognósticos, ficando os donos de caça-níqueis interessados obrigados a recolher aos cofres do estado 301 Ufirs para adquirirem o selo de permissão de uso do equipamento.

Essas irregularidades levaram-me a denunciar o descalabro (eu havia advertido Mário Márcio que faria isso desde o início), com o escândalo resultado na queda da diretoria da Loteria e do procurador-geral de Justiça. Detalhe: a lista dos caça-níqueis selados pela loteria desapareceu e o imbróglio tomou proporções gigantescas.

Dois anos depois dessa tempestade é que fui convidado a escrever o livro defendendo a legalização do jogo pelo mesmo grupo prejudicado com as minhas denúncias, com o argumento (deles) de que eu sempre fora favorável à legalização do jogo para combater a corrupção e que em momento algum deixei de ouvi-los e de adverti-los sobre as irregularidades.

Como se vê, levei um cano histórico do grupo de Cachoeira que, aliás, fiquei conhecendo em Brasília, casualmente, sem que ele soubesse com quem estava falando. Agora veio o troco.

O silêncio da imprensa

Faço essas considerações para esclarecer o público que os escândalos de hoje, envolvendo Cachoeira e políticos influentes, eram previsíveis e fazem parte de um esquema violento para manter vivo o jogo de azar em um país que faz da jogatina um privilégio do estado, União e municípios. O decreto-lei proibindo o jogo de azar no Brasil foi assinado pelo presidente Eurico Gaspar Dutra, em 1946, e já nasceu errado. Depois de assinada a lei, a pedido de sua mulher, Santinha, que era muito católica, Dutra descobriu que estava matando um dos ovos de ouro do governo, que era a Loteria Federal. Resultado: ele teve que alterar a lei e a emenda ficou pior do que o soneto porque, com a nova redação, somente a União, estado e municípios poderiam explorar o jogo, o que sepultou o aspecto moral da matéria e propagou a corrupção no país.

Portanto, o Caso Cachoeira serve de reflexão sobre se vale ou não a pena continuar proibindo o jogo no Brasil e o verdadeiro papel da imprensa neste debate. Acho que não. A discussão é a mesma sobre a questão das drogas que, uma vez proibida, estimula o tráfico. Em Belo Horizonte, por exemplo, existem hoje cerca de 20 casas de bingos funcionando na clandestinidade, porém mantidas pela corrupção policial e política e a imprensa não fala nada. O dono paga horrores de propina para manter o negócio aberto.

Sou, pois, totalmente a favor da liberação do jogo para combater a corrupção, e contra a liberação das drogas porque entendo que a sua permissão reduziria o tráfico, mas estimularia o uso, o que é bem pior.

Agosto/2012

A profissão como paixão

Por José Cleves em 21/08/2012 na edição 708

Passos de uma paixão – Dídimo Paiva e a dignidade no jornalismo, de Tião Martins e Alberto Sena, e Um bunker na imprensa, coletânea de artigos organizada por André Ribião, Conceito Editorial

 

Chega esta semana às bancas a segunda edição da obra dupla com o perfil biográfico e uma pequena amostra dos milhares de artigos que o jornalista mineiro Dídimo Paiva publicou ao longo de mais de 60 anos, intitulada Passos de uma paixão – Dídimo Paiva e a dignidade no jornalismo, escrito por Tião Martins e Alberto Sena, e Um bunker na imprensa, uma coletânea de artigos organizada por André Ribião. O selo é da Conceito Editorial.

Não se trata de uma obra qualquer. É o que esse jornalista de 84 anos fez e escreveu durante toda a sua vida com uma independência rara nos dias de hoje Deu ao fato político-cultural e social do país o que ele merece, com reflexões futuristas e corajosas. Uma contribuição tão grande para o jornalismo crítico e sindical – as questões trabalhistas e o ofício de reportar fatos sempre foram o seu foco – que o considero um visionário de todas as fases da comunicação manuscrita, tipográfica e computadorizada da imprensa brasileira. Seus textos antigos têm a mesma concisão e lucidez dos modernos que são extraídos de ferramentas que na sua mocidade não existiam.

Um fenômeno da comunicação, esse é o termo correto para definir Dídimo Paiva. “Escrevo desde pequeno”, ele justificou ante a minha admiração pelas maravilhas de seus artigos registrados na coletânea. Essa obra-prima deve ser um livro de cabeceira para todos os jornalistas, políticos, estudantes e historiadores interessados em compreender um pouco o que ocorreu no passado na análise deste crítico contumaz que levou a vida catando informações discernidas pelo cérebro privilegiado de quem nunca deixou escapar nada ao seu redor.

“Consciência das massas”

O curioso nos seus artigos, que chegaram à grande imprensa em meados da década de 1940 (falo de seus artigos, e não dos editoriais que escreveu durante mais de 40 anos e que não constam da coletânea porque não eram assinados), é que não há sequer uma citação roubada. Os pensamentos que não lhe pertenciam tinham o crédito do autor, uma forma de bibliografia contextualizada no corpo da matéria escrita sem usurpação de pensamentos. Esse cuidado com o tratamento de ideias alheias revela o seu lado ético, o mesmo adjetivo que fez dele um profissional incorruptível e totalmente independente. Analisava os fatos conforme as suas convicções e opinava sem favores. Uso o verbo no passado porque atualmente Dídimo aposentou os dois dedos indicadores que utilizava para datilografar nas antigas máquinas de escrever e nos atuais computadores, com os quais travou uma guerra desigual.

Apenas para ilustrar a riqueza de pensamentos deste meu amigo, cito o artigo que ele publicou no jornalEstado de Minas, onde passou a maior parte de sua carreira de repórter e editorialista, intitulado “Os monstrengos do arbítrio ainda sufocam a liberdade de informação” (junho de 1983, página 195 da coletânea). O Brasil vivia os derradeiros momentos da ditadura militar e falava-se muito em democracia liberal, a que viria no próximo governo civil que tomaria posse em 1985 e que eu acompanhei de perto em Brasília na cobertura diária de seus palácios (Alvorada, Planalto e Buritis).

Sobre o tema, Dídimo cita Álvaro Vieira Pinto e Perseu Abramo que falam sobre o controle da opinião pública e os meios de comunicação de massa – a TV como o mito da informação etc. Nesta leva, cita a televisão como um instrumento de comunicação de massa a serviço do Estado e do capitalismo. O velho jornalista fala em um dos trechos de seu artigo “que numa sociedade regida pelo consumo como a nossa os instrumentos de comunicação são usados para direcionar a consciência das massas e que o povo fica à mercê dos oradores dos partidos oficiais”.

Falsas reportagens

Sobre o consumismo, Dídimo escreveu, no artigoÉtica e a morte da Princesa” (1997, p. 94), a seguinte frase de Mathew Parris (Times), citada por Alberto Dines: “No lugar de jornalismo como processo de elevação cultural, surgiu um bruxo chamado mercado que mascara as vilezas com seu abominável mote – viver é vender.”

Algo tão verdadeiro como atual (o assunto era o baixo jornalismo da mídia impressa para vender mais) porque tudo continua como antes nesta competição de mercado, até mesmo no sistema político brasileiro, tanto nas eleições proporcionais como nas majoritárias, onde a escolha do eleitor fica restrita aos candidatos que lhe são impostos pelas siglas partidárias.

Era assim e continua assim. Os jornais de papel e as revistas, que tiveram uma queda drástica na venda de seus exemplares, estão agora negociando opinião fora do mix publicitário. Ou seja, o produto vem em forma de reportagens – muitas delas pagas com dinheiro do consumidor – para enganar a opinião pública. É uma fraude política, porque por trás desta manobra estão prefeitos, governadores e presidentes – assim como deputados, senadores e vereadores – eleitos conforme escolhas prévias dos partidos, via-propaganda eleitoral extemporânea, pela conveniência de um sistema que dá ao povo o direito de escolha após um processo seletivo no mínimo duvidoso. Aos milhões de eleitores de cidades dos grandes centros metropolitanos, por exemplo, são apresentados dois a três candidatos para serem escolhidos para governá-los.

Princípios básicos

A maioria destes políticos é fabricada pela mídia, que continua enfiando produtos de péssima qualidade goela abaixo do povo. Quando se trata de uma mercadoria sem alma, o consumidor descarta logo e a má fama da marca leva a propaganda à desgraça. Mas políticos não enguiçam à vista do povo. São dissimulados e acobertados pela imprensa bandida que leva o seu e deixa a cria arruinando o país porque o que interessa para os donos dos veículos de comunicação de massa mal intencionados é o enriquecimento a qualquer preço. Foram eles que fabricaram os falsos mitos que fizeram guerras, confiscaram a economia do povo e levaram muitos países à desgraça profunda.

É por essa e outras razões que recomendo a todos essa obra maravilhosa deste baluarte da imprensa brasileira que os donos da imprensa e os políticos nunca enganaram – e ele, especialmente, nunca vendeu gato por lebre a seus leitores pelo simples fato de ser um jornalista nato. Quem almejar ser pelo menos a sombra de Dídimo Paiva, deve seguir à risca os artigos 2º e 5º dos dez princípios adotados pela imprensa da Alemanha pós-Hitler (p.99 da coletânea em epígrafe):

“Preservação da independência, respeito à verdade, informação confiável ao público mediante verificação das fontes de notícia e retificação das publicadas erroneamente.”

O MP e as medidas protetivas para o bom jornalismo

Por José Cleves em 07/08/2012 na edição 706

 A recomendação do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) para que os promotores priorizem os crimes praticados contra jornalistas é da mais alta importância para a democracia pelo que representa a imprensa em um regime de rédeas soltas e improbidades que nunca são punidas, fortunas do povo jamais devolvidas e julgamentos nem sempre justos. Enquanto uns tiram a força da imprensa, como foi o caso da dispensa do diploma para o exercício da profissão de jornalistas, outros tentam compensar as perdas com medidas protetivas para o bom jornalismo, como essa proposta pelo conselheiro do CNMPAlmino Afonso Fernandes.

Ao justificar a recomendação para que os promotores priorizem os crimes contra jornalistas, Fernandes escreveu que “os membros do Ministério Público brasileiro, observadas as disposições constitucionais e legais, deverão atuar de forma célere, rigorosa e preferencial na apuração dos crimes praticados em face de jornalistas, apresentadores e demais integrantes da imprensa, por configurarem violação ao direito fundamental à liberdade de expressão”.

Fernandes cita a Declaração de Santiago sobre a Liberdade de Imprensa na América Latina, aprovada no encontro das Associações de Imprensa da América do Sul em abril deste ano.

O coronel não foi a julgamento

Segundo a Declaração de Santiago, 29 jornalistas foram mortos na América Latina em 2011, o que representaria um terço do total de profissionais da informação assassinados no mundo inteiro. Fernandes tem razão. Nos seis primeiros meses de 2012 quatro jornalistas já morreram no Brasil em crimes relacionados ao exercício da profissão, como informa o Comitê para Proteção dos Jornalistas, organização internacional que defende “o direito de jornalistas fazerem reportagens sem medo de represália”.

Esse mesmo comitê revela que aproximadamente 70% dos assassinatos de jornalistas registrados no Brasil nos últimos 20 anos não foram totalmente esclarecidos. Devido à crescente insegurança, o Comitê chegou a publicar, este ano, um Guia para Segurança de Jornalistas. O alerta do Comitê para Proteção dos Jornalistas e as recomendações do CNMP são relevantes e procedentes. Falo isso com a autoridade de quem testemunhou dois golpes mortais contra a liberdade de expressão: primeiro foi a execução do repórter do Correio Braziliense Mário Eugênio, morto com cinco tiros disparados a mando de militares do Exército e da cúpula da Polícia Civil de Brasília, em 1984.

Fiz a minha parte na investigação do caso e o imortalizei no livro Distrito Zero (Maza Edições, 2000). Logo após o seu lançamento em Brasília, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou a prisão do pistoleiro Divino 45, que fez os sete disparos na cabeça do repórter. Ele estava em liberdade, com fama de doido (foi dado como inimputável) e, naturalmente, sob a proteção dos homens do então secretário de Segurança e ex-integrante do Serviço Nacional de Informação (SNI), coronel Lauro Rieth.

O meu esforço para punir os culpados teve o reconhecimento do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) que, na revista comemorativa de seus 40 anos (Projeto Memória), incluiu-me como o único jornalista do país a fazer parte deste documento histórico ao lado do extraordinário desembargador Edson Smaniotto, o juiz do caso que mandou prender preventivamente o coronel Rieth a pedido do promotor Paulo Tavares Lemos, outro entrevistado. Infelizmente o coronel não foi a julgamento.

A farsa e as fraudes

Meu colega foi executado em praça pública porque denunciava o envolvimento de policiais civis e militares do Exército no Esquadrão da Morte. Foi um crime anunciado porque o Correio Braziliense permitiu que ele fosse desarmado dentro da redação e sucumbiu diante da perseguição policial comandada pelo coronel Lauro Rieth, ao não assumir uma postura editorialmente enérgica para evitar o pior. Reclamei isso várias vezes com o então editor-executivo da redação do CB, Fernando Lemos, falecido recentemente, que exigia a apuração do caso como um crime militar, já que o repórter foi abatido com armas das duas corporações – civil e militar – e o crime foi planejado dentro do Pelotão de Investigações Criminais do Exército (PIC) e da cúpula da Polícia Civil. Rieth chegou a redigir uma portaria proibindo a entrada do jornalista nas repartições policiais pouco antes do crime.

Não obstante todo esse drama, fui vítima, dias antes do lançamento do Distrito Zero, de um outro crime contra a liberdade de expressão que também imortalizei no livro de minha autoria (A Justiça dos Lobos – por que a imprensa tomou meu lugar no banco dos réus). O livro relata uma trama diabólica da polícia mineira que resultou no misterioso assassinato de minha mulher – mãe de meus cinco filhos – e dos dois indivíduos que a executaram. Para completar o serviço, indiciaram-me como autor do crime em represália às minhas denúncias contra a banda podre da polícia que comandava vários esquemas de corrupção integrada pelos maus elementos das duas corporações.

Escapei-me dessa enrascada por razões afetivas e de caráter, os laços de família (minha e de minha mulher, que me defenderam com o amor que sempre dediquei a elas), a verdade e a coragem porque não vergo ante a opressão, nem sob tortura. Meu advogado Marcelo Leonardo provou na justiça toda a farsa arquitetada para silenciar-me e as fraudes – colocaram uma arma nas proximidades do local onde a minha mulher foi morta e fraudaram laudos, algo tão absurdo que a Justiça inocentou-me à unanimidade em todas as instâncias.

A fama da imprensa

Mas os delegados, peritos, promotores que fizeram isso comigo, cujos nomes relato no livro, continuam impunes porque no Brasil prevalece a máxima de que polícia não prende polícia e a Justiça, que detectou toda a fraude (depenaram o processo com supressão e troca de documentos), julgou apenas o meu caso. Cabia ao órgão corregedor da Polícia Civil avocar o inquérito para expulsar os bandidos da corporação para o bem do serviço público, mas nada disso foi feito porque a coisa funciona assim no Brasil.

Neste processo louco de mais de duas mil páginas, nunca lido por repórter nenhum deste país, apesar do caso ter parado até o Fantástico da TV Globo, até o Ministério Público, que sempre defendi e tive como parceiro, falhou por incompetência dos que atuaram no caso, assim como falhou a imprensa, que foi igualmente covarde. Não guardo mágoa destas instituições. Pelo contrário, glorifico-as como baluartes da democracia. Foram ações individualizadas. Tenho um respeito muito grande pelos promotores e juízes da comarca onde trabalho e sou igualmente respeitado pela polícia local. Vejo hoje um MP bem mais atuante e uma polícia muito fiscalizada. Pena que não posso dizer o mesmo da classe jornalística que está à deriva, vendendo opinião por razões que todos sabem.

Portanto, precisamos urgentemente de lavar a nossa roupa suja para expurgar o rótulo nojento da polícia de que jornalista não pune jornalista e a fama maldita de que a imprensa está cada vez mais comprada. Cobra-se para falar bem, recebe-se para omitir fatos de interesse público e mete-se o pau, com ou sem razão, naqueles que ignoram os pedidos de jabás ou acertos comerciais.

“Bate, mas escuta”

Quando um ou outro repórter resolve afrontar os poderosos é calado pela ameaça de desemprego, corrompido ou sepultado como profissional ou literalmente a sete palmos de terra como herói morto. Nesta mesma cova profunda temos os tombados pela ideologia proibida (os Herzog da vida) e um punhado de jornalistas vítimas das mais variadas formas de perseguição.

É por essas e outras razões que defendo a criação de um Conselho Federal para o controle interno do exercício da profissão de jornalistas e a volta urgente da exigência do diploma que foi, para mim, o maior crime que se praticou contra a categoria em toda a sua história no país. Hoje, qualquer cidadão de bem ou bandido pode obter o registro de jornalista no Ministério do Trabalho e gozar das prerrogativas da profissão e das garantias constitucionais que lhe são dadas pela “profissão de jornalista” assinada na carteira de trabalho.

Infelizmente, temos uma imprensa subjetiva que, como dizia o meu amigo e guru Dídimo Paiva, não ouve os dois lados. Os motivos são vários: incompetência, falta de ética ou total ausência de capacidade cognitiva para o exercício da profissão, porque têm esses repórteres de merda uma visão holística completamente diferente do jornalismo objetivo que lembra Temístocles que, ao se rebelar contra as ordens do general que o comandava (meio século antes de Cristo), não se intimidou e bradou em tom de desafio: “Pode bater, mas escuta.”

 

O avanço do MP e o atraso da imprensa

Por José Cleves em 18/09/2012 na edição 712

O procurador-geral de Justiça de Minas Gerais, Alceu José Torres Marques, afirmou recentemente que sem a imprensa seria muito difícil para o Ministério Público impedir a volta ao passado após o fim do regime militar (1964-1984), conforme a missão que lhe foi atribuída a partir da Constituição Federal de 1988. A declaração ocorreu em Belo Horizonte durante entrega da comenda “Francisco José Lins do Rego” aos jornalistas mineiros Alberico Souza Cruz, ex-diretor responsável pela Central Globo de Jornalismo, e Dídimo de Miranda Paiva, ícone do jornalismo brasileiro que teve a sua vida e obra relatada em livro, já na sua segunda edição.

Torres foi justo com os jornalistas, embora haja um descompasso entre essas duas representações democráticas. O MP é uma instituição pública, bem fiscalizada e bem remunerada, que deixou de atuar apenas dentro dos tribunais criminais para ter um novo papel na sociedade a partir de 1988, ao acabar com a sua função meramente acusatória e defensora da União para assumir a defesa dos interesses difusos e coletivos da sociedade.

Houve, com isso, uma convergência de objetivos que colocaram na mesma direção jornalistas e promotores, na busca da verdade. Mas a imprensa, ao contrário do MP, não avançou um centímetro após a vigência deste novo texto constitucional, a não ser usufruir dos direitos previstos no seu Art. 5º de expressar o que pensa.

Não sabiam o que é a Constituição

A tão decantada liberdade de imprensa é hoje uma ferramenta que serve a dois senhores – o do bem e o dom mal – porque o jornalista é um profissional autônomo e os veículos de comunicação, ao contrário do MP, visam ao lucro e ao poder. Portanto, a informação representa, para muitos profissionais da imprensa, uma moeda perigosa de manipulação dos fatos.

Essa situação piorou com a dispensa do diploma de jornalista (STJ/2009) e a fragilidade da categoria que não tem um controle interno para fiscalizar os maus profissionais. Na verdade, a classe jornalística, que tanto contribuiu para a elaboração da CF de 1988, abdicou do direito de atuar em causa própria para, simplesmente, noticiar as mudanças constitucionais. Parou no tempo. Como repórter constituinte da nova Carta Magna em Brasília, vivenciei esse momento histórico da democracia e desde o dia em que ouvi do presidente eleito Tancredo Neves a afirmação de que “a convocação da Assembleia Nacional Constituinte é mais importante do que ter o primeiro governo civil”, passei a imaginar os ganhos que a imprensa e a sociedade teriam com essa nova Constituição. Infelizmente, o povo pouco sabia o que estava por vir.

A ignorância era tanta que o chefe de redação do Correio Braziliense, Renato Riella, recomendou-me em 1987, no auge do debate sobre o assunto, uma enquete matinal sobre o que representava para a população da capital federal a nova Constituição e o resultado foi catastrófico. Mais da metade dos entrevistados não sabia o que era uma Constituição.

Os principais ganhos do MP

Mas enquanto boa parte do povo ignorava a nova Constituição e os jornalistas se diziam satisfeitos com a liberdade, os implacáveis e desalmados “promotores de acusação”, até então limitados às ações criminais, resolveram acabar com esse estigma e avançar os seus direitos.

De olho na “Comissão de Notáveis”, formada pelo governo por 50 integrantes que redigiram um anteprojeto de texto constitucional – o Anteprojeto Afonso Arinos, em homenagem ao presidente da Comissão de Estudos Constitucionais –, os promotores realizaram, em 1986, o VI Congresso Nacional para discutir os interesses da categoria visando a Constituinte. Houve também a aprovação da “Carta de Curitiba”, tirada do 1º Encontro Nacional de Procuradores de Justiça e presidentes de associações ligadas ao Ministério Público. Essa mobilização introduziu na “Comissão Afonso Arinos” a maioria das conquistas obtidas dois anos depois pela instituição.

Os principais ganhos foram a autonomia administrativa e financeira e dotação orçamentária própria; a eleição dos procuradores-gerais de Justiça dos estados e do Distrito Federal dentre os integrantes da carreira; função de defesa do regime democrático (copiado da Constituição Portuguesa de 1976); da ordem jurídica e dos interesses sociais e individuais indisponíveis; promoção privativa da ação penal publica e o fim da defesa da União.

Maus profissionais e patrões corruptos

Não foi um trabalho fácil. O MP estava dividido, por exemplo, sobre a sua desvinculação da Advocacia da União (AGU). O ex-procurador-geral da República e relator do capítulo do Ministério Público na Comissão Afonso Arinos, Sepúlveda Pertence, teve dificuldades para convencer os mais radicais da necessidade de uma verdadeira revolução dentro do MP para a sua emancipação.

Pertence conta detalhes dessa “guerra de nervos” travada no seio da instituição na revista comemorativa dos 40 anos do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) – Projeto Memória –, editada em 2008 e da qual faço parte. A queda de braço gerou conflitos de vaidades e muita confusão. Os jornalistas que cobriam essa Comissão do anteprojeto com as alterações propostas pela ala progressista do MP se diziam diante de uma caixa de marimbondo.

Felizmente, prevaleceu o improvável para muitos. Na minha modesta opinião, a autonomia conferida aos procuradores e promotores foi a principal conquista da instituição. Pois bem. E os jornalistas, o que fizeram esse tempo todo além de cobrir os fatos? O que fez a classe para assegurar os seus direitos e prestar um bom serviço à sociedade, na condição de Quarto Poder dentro da estrutura democrática? Nada. Absolutamente nada. Não houve reforma da Lei de Imprensa e nem se assegurou o direito mínimo de exigência do diploma para o exercício da profissão. Hoje vivemos à deriva, vítimas dos maus profissionais e dos patrões corruptos que fazem o que bem entendem com as redações, impingindo à categoria situações humilhantes de ter que omitir fatos ou inventá-los sob ameaça de desemprego, com salário de migalhas.

Parceria jornalistas-promotores

Diante do poder que hoje tem o promotor e das dificuldades que têm os jornalistas para a publicação de fatos de interesse público de difícil elucidação sem correrem o risco de uma ação judicial – e levando-se em consideração a convergência de interesses que unem essas duas instituições – aconselho uma parceria mútua entre jornalistas e promotores nas demandas de maior complexidade. Fiz isso várias vezes e sempre fui muito bem sucedido, prova é que nunca fui condenado por crime de dano moral em 42 anos de reportagens investigativas.

Recentemente, fechei um acordo com a promotora eleitoral da comarca de Nova Lima, MG, Ivana Andrade, que vem fazendo um extraordinário trabalho de prevenção contra a compra de votos na comarca, inclusive com a mobilização dos estudantes secundaristas através de palestras em escolas, concurso de redação sobre o tema e outras ações muito bem elaboradas e que terão, certamente, excelentes resultados nas urnas. Coloquei o jornal à disposição do MP e criamos um canal direto para troca de informações.

Esse mesmo tipo de parceria, fiz no passado em Brasília com diversos promotores e também em Belo Horizonte – um deles com o atual secretário de Estado de Defesa Social, Rômulo Ferraz, durante a investigação da Máfia do Carvão (1998). Atuei também dentro da Coordenadoria de Combate ao Crime Organizado, fornecendo e recebendo informações para reprimir os caça-níqueis e bingos na capital mineira no final da década de 90, de forma compartilhada e segura.

A defesa do interesse público

Esta é, por certo, uma via mão dupla, porque deve também o promotor buscar essa parceria com a imprensa. Talvez se o promotor Francisco do Rego tivesse tido uma contrapartida dos jornalistas na investigação da fraude nos combustíveis em 2002, o desfecho desse trabalho seria outro. Ninguém me tira da cabeça que o seu matador não agiu apenas pensando em vingança, mas na possibilidade de encerrar as investigações, já que o promotor estava praticamente viúvo nas investigações. A verdade é que a imprensa furtou-se ao seu papel de algoz do bandido ao apenas reproduzir o que Francisco do Rego dizia e isso alimentou o ódio do criminoso que via no promotor um perseguidor implacável e único e decidiu matá-lo, como se isso fosse o suficiente para acobertar as fraudes.

Em situação inversa, porém parecida, o meu colega Mário Eugênio, repórter do Correio Braziliense, também foi executado em 1984 em praça pública, em Brasília, porque denunciava sozinho a existência do Esquadrão da Morte, sem buscar uma parceria com o MP. Foi, também, vítima de uma pretensa queima de arquivo. Todos os envolvidos no assassinato covarde do repórter e do promotor foram condenados, mas já estão em liberdade. O que atirou no repórter demorou 16 anos para ser preso.

Portanto, é preciso que haja uma união de forças entre o Ministério Público e a imprensa, como enaltece o procurador Alceu Torres no episódio da consolidação da democracia logo após o regime militar, para que promotores e jornalistas possam atuar com mais segurança e tranquilidade na defesa do interesse público.

 

 

Outubro/2012

O obscuro quarto poder da imprensa

Por José Cleves em 16/10/2012 na edição 716

 Há hoje em dia vários questionamentos sobre o verdadeiro papel da imprensa brasileira na vida política e social do país. Alguns jornalistas renomados a têm como o Quarto Poder. Outros, como o decano Alberto Dines, o mais crítico dos críticos da imprensa brasileira, acham que não. “Pode ser o quinto ou o sexto poder, mas nunca o quarto”, disse o criador do Observatório da Imprensa, numa entrevista que li tempos atrás aqui mesmo neste site. Dines justificou o seu posicionamento comparando a imprensa norte-americana com a nossa e dizendo que nos EUA a imprensa se posiciona nos editoriais e aqui, no noticiário, de forma a reproduzir fatos tendenciosos e inconvincentes.

A mistura de opinião com notícia faz deste alho com bugalho algo tão primitivo que nos faz refletir sobre esse atraso da nossa imprensa a caminho do terceiro milênio. Penso que a primeira coisa que o dono de um veículo de comunicação tem que fazer para dar credibilidade à sua empresa é separar a opinião, que é dele, do noticiário, que não tem dono. Somente assim, o veículo será objetivo e imparcial, ainda que o seu corpo editorial se declare partidário. A redação deve ser comparável a uma figura geométrica de vários lados, inclusive o do patrão, mas apenas um merece a preferência – o do interesse público.

O polêmico Augusto Nunes, editor da autobiografia de Samuel Wainer Minha Razão de Viver (o mesmo que em certa ocasião disse que não é função de jornalista investigar, embora seja ele um jornalista investigativo da melhor qualidade), tem a mesma opinião. Nunes tira o poder da imprensa brasileira dando como exemplo o fracasso dos veículos de comunicação em três episódios históricos: a volta de Getúlio Vargas ao poder, em 1951; a eleição de Leonel Brizola para o governo do Rio (1982) e de Lula para presidente (2002), todos eles eleitos a contragosto da grande imprensa. “Se ela (a imprensa) tivesse todo esse poder, nenhum desses políticos seria eleito”, espetou Nunes em uma de suas observações sobre o assunto.

Programas sociais

Outros jornalistas afirmam que a imprensa fracassou também no Estado Novo de Getúlio (1937-1945) e na consolidação da ditadura pelo governo militar, em 1968 (quatro anos após o golpe militar que durou até 1985), com a edição do AI-5 (1969-1979), e em tantos outros episódios históricos e antidemocráticos, pelo simples fatos de não conseguir mobilizar a opinião pública. E diante do fracasso iminente, uma parte bandeou para o lado mais forte – o do poder político. Ou seja, para os céticos, se os veículos de comunicação de massa fossem realmente o Quarto Poder, eles conduziriam o país conforme o seu desejo porque teriam força suficiente para isso.

Vejo essa polêmica traçando o oposto da imprensa ideal, aquela que age com subjetividade e parcialidade a serviço de grupos políticos e não do interesse público. Quando a imprensa deixa de prestar contas à opinião pública para atender outros interesses, ela perde força e credibilidade. A volta de Getúlio ao poder, em 1951, por exemplo, contrariava os barões do café (que mandavam na imprensa da época) devido ao trabalhismo getulista que, na opinião destes, trocava agricultores por operários. Já nas eleições de Brizola e Lula, os banqueiros, também donos da imprensa contemporânea, se diziam preocupados com a elevação do “risco Brasil” caso a esquerda tomasse o poder. Injetaram dinheiro nos donos da opinião pública, mas não puderam valer a sua vontade por total falta de credibilidade da imprensa bandida.

A verdade é que Getúlio venceu nas urnas em 1950 por causa do que ele fez para o trabalhador, como a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), e até hoje é lembrado por esse legado. Algo tão relevante nos seus 18 anos de poder (1930-1945 e 1951-1954) que pouco importa a muitos historiadores e formadores de opinião a sua veia de ditador implacável. Já o então “perigoso” Lula derrotou a elite em 2002 por causa das medidas impopulares de Fernando Henrique Cardoso, como a venda da Vale, por exemplo. E deixou o governo, após dois mandatos, com uma aceitação recorde por causa de seus programas sociais. Brizola somente não fez tanto sucesso por conta da campanha difamatória movida contra o seu governo, principalmente pela Rede Globo.

Chateaubriand sempre usufruiu do poder

Quanto ao AI-5, este foi editado e vigorado pela linha dura do Exército em pleno regime de exceção. A sua instalação fugiu ao controle da imprensa e ainda ficou barato, porque o texto original redigido pelo ministro da justiça, Gama e Silva, era bem pior. O documento sugeria o fechamento do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), o Congresso, os poderes legislativos estaduais e municipais e deporia até os prefeitos de todas as cidades brasileiras. Seria a ditadura nazifascista mais cruel da América Latina. Até o truculento presidente Costa e Silva (1967-1969) se opôs a essa “dose cavalar”, assinando algo, digamos, menos letal, na palavra de seu ex-chefe da Casa Civil, Rondon Pacheco.

A verdade é que a imprensa pode muito e não pode nada ao mesmo tempo porque é movida pelo dinheiro. Quando colocamos em confronto o capital e o trabalho, a grande imprensa fica com a primeira opção e o povo com a segunda. Será sempre assim. O trabalhador é a parte menos favorecida nas decisões políticas e isso está provado pela história recente do Brasil, a partir da revolução de 1930, quando da revolta dos cafeicultores de São Paulo e a guerra travada entre Getúlio e Carlos Lacerda, batalha essa que se acirrou com a criação do jornal Última Hora, uma doação de Getúlio a Samuel Wainer, seu amigo, fato esse que Lacerda, concorrente direto da Wainer, não aceitou.

Essa briga acabou com o suicídio de Getúlio, que deu um passo para a eternidade e outro para a história, como ele escreveu na sua carta-testamento, mas as divergências continuaram em outros patamares. Assis Chateaubriand (1892-1968), por exemplo, que comandava o maior império jornalístico do país em meados do século passado, sempre usufruiu do poder. Apoiou as coisas erradas e certas de Getúlio, enquanto isso lhe interessou. O jornal Estado de Minas, do Grupo Associados – o chamado “grande jornal dos mineiros”, um dos poucos remanescentes do império de Chatô – sempre esteve com o governo onde o governo estiver porque herdou essa vocação do pai dos associados.

Um Quarto Poder conveniente

O único entrevero que o jornal teve com o governo do estado foi durante o mandato de Newton Cardoso (1987-1991) e a razão disso todos sabem. Newtão vetou a derrama de verbas publicitárias para o jornal que, em represália, partiu para cima do governador que sofreu uma das maiores perseguições feitas a um político neste país. Justas ou injustas, as denúncias foram motivadas pelo vil metal. Aliás, o rei da retórica política brasileira, Carlos Lacerda (1914-1978), ex-governador do antigo estado da Guanabara, sublinhou assim um comportamento nada ético do então famoso Jornal do Brasil, sobre a relação do diário com o então governador Negrão de Lima, que governou o mesmo estado de 1965 a 1970, em pleno regime militar. “O Jornal do Brasil pediu intervenção no Rio alegando que o governo de Negrão de Lima não prestava; 24h após restabelecer o recebimento da verba publicitária para o jornal, o governador passou a ser coberto de elogios pela mesma emissora; essa é a incoerência da imprensa nacional”, criticou Lacerda à ocasião, em entrevista à extinta TV Tupi, da Rede de Emissoras Associadas de Chateaubriand.

Dentro desse quadro de interesses, podemos dizer que a imprensa é um Quarto Poder conveniente. Quando o dono não interfere na redação – e essa é competente – empareda os poderes constituídos, mas quando age por interesses obscuros no noticiário, é inconveniente e nefasta para o interesse público e generoso com o poder dominante. Atualmente, podemos afirmar, com absoluta certeza, que a imprensa convencional já não tem o mesmo poder de antigamente. Perdeu no mínimo uma posição para a internet, onde o povo é quem forma a sua própria opinião. Ao invés do controle remoto da televisão ou do seletor do rádio e/ou do papel da mídia imprensa, essa nova geração de editores-leitores usa o teclado do computador para opinar, apagar ou salvar opiniões e fatos, conforme a sua crença.

 

Outubro/2012

Novembro/2012

Um julgamento à revelia da ciência

Por José Cleves em 20/11/2012 na edição 721

 Sobrou para sete jurados de Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, julgar a partir de segunda-feira (19/11) se o ex-goleiro do Flamengo Bruno mandou ou não matar a mãe de seu filho, Eliza Samúdio, em 2010, em mais um caso confuso e mal apurado pela polícia que chega ao júri à revelia da ciência. Não sou eu – alvo de perseguição do delegado Edson Moreira no conhecido assalto que resultou na morte de minha mulher (dezembro/2000) – que estou afirmando isso. Reportagem divulgada pela Folha de S.Paulo no domingo (18/11), conclui a existência de pelo menos “10 buracos” no inquérito policial que investigou o caso. Diz um trecho da reportagem:

“(...) são ao menos dez buracos que vão da falta da quebra do sigilo bancário, para saber se houve o pagamento de R$ 30 mil na morte de Eliza, como se sustenta, ao uso do depoimento do adolescente tomado sem a presença de advogado, o que é proibido. Uma das brechas da investigação é a participação do policial civil José Lauriano de Assis Filho, 47, o Zezé. A investigação desprezou 37 ligações trocadas por Zezé com os principais envolvidos no caso Eliza realizadas nos dias cruciais da trama. Em 10 de junho de 2010, por exemplo, ele recebeu três ligações do ex-policial Marcos Aparecido dos Santos, o Bola, entre 22h e 23h, horário em que a Promotoria disse que Eliza foi morta. Assis Filho chegou a se encontrar pessoalmente com Bola naquela noite do dia 10, como admite, mas não foi arrolado ao menos como testemunha no julgamento.”

Portanto, como se vê, faltam provas científicas e técnicas do assassinato e de seu mando e não vai querer o delegado exigir, também neste caso, que os jurados condenem o réu (falo especificamente de Bruno) com base apenas em lorotas e/ou provas circunstanciais.

O caso dos Irmãos Naves

Aliás, em entrevista à mesma Folha (agosto/2010), o delegado menosprezou os jurados que me absolveram (julgamento ocorrido em 7 de abril de 2004, no 1º Tribunal do Júri de Belo Horizonte), com a seguinte declaração dada à repórter Cristina Moreno:

“(...) os sete jurados eram ‘leigos’. Jurado não gosta de prova científica, jurado é do povão, vai pela emoção.”

É lamentável que uma autoridade da respeitada Polícia Civil de Minas Gerais dê uma declaração dessa natureza. Pior ainda imaginar que o Ministério Público assinou em baixo as denúncias da polícia sem ao menos exigir a materialidade do crime. Ou, na pior das hipóteses, a prova de seu mando, para que se pudesse submeter ao júri o autor da encomenda.

Vamos analisar essas questões à luz do Direito, com base na experiência de um jornalista – ou na ótica de um jurado que, como bem diz o delegado, “é um leigo”. É preciso dizer que o instituto júri é a mais democrática e justa forma de julgamento, por ser o crime de morte um fato do mundo sensível e a sua prática dolosa, um trecho flagrante da humanidade, motivo pelo qual este tipo de crime deve ser julgado pela sociedade.

O conselho de sentença é soberano, sábio e justo. Basta dizer, que toda vez que ele é contrariado, comete-se uma grande injustiça, como ocorreu no Caso dos Irmãos Naves (1937), quando os jurados de Araguari-MG absolveram duas vezes os réus Joaquim e Sebastião, levados a julgamento sem a presença do corpo da pretensa vítima que, segundo o truculento delegado Chico Alves, teria sido assassinado pelos irmãos.

Sem prova da encomenda

Influenciado pela polícia, a imprensa e a Constituinte de 1937, que tirou a autonomia do júri, o Tribunal de Justiça de MG ignorou a decisão dos jurados e condenou os irmãos Naves, que pagaram mais de oito anos de cadeia injustamente. O “morto” apareceu vivo 15 anos depois e desmoralizou a nossa justiça.

Pois bem. Quanto ao crime de mando, não comprovado nos autos enviados à justiça sobre o Caso Bruno, é preciso ressaltar a dificuldade de se esclarecer a sua autoria. São raros os contratos e recibos desse tipo de encomenda. Já reportei dezenas de casos dessa natureza e sei que é difícil estabelecer a relação entre o mandante e o executor de um assassinato, mas com a tecnologia atual (celulares, extratos bancários, redes sociais, grampos telefônicos etc.) isso ficou menos complicado.

Desta forma, tendo em mãos o executor do crime (no caso, Bola e Macarrão, segundo a polícia), fica mais fácil para a autoridade chegar ao autor intelectual, o mandante, a pessoa que, teoricamente, teria motivos e interesses na morte da vítima. Bruno tinha interesse no sumiço de Eliza, como todo parceiro tem em relação ao desafeto, mas uma coisa é ver essa pessoa bem distante, talvez para sempre, outra é manifestar a acólitos o desejo de sua morte e contribuir com isso, de forma efetiva, através de pagamento ou de uma recompensa.

A coisa pode ficar feia

Pelo que sei de pessoas que folhearam o processo, exaustivamente, entre os quais, advogados e jornalistas, não há um elo de ligação efetivo e claro que motive o crime pelos artifícios acima citados, a não ser que essas pessoas estejam completamente enganadas.

O delegado terá mais uma oportunidade de clarear esses fatos aos jurados, já que foi convocado para esse fim e espera-se que ele convença a todos não apenas da morte de Eliza Samúdio, mas de que Bruno mandou matá-la.

Bruno está preso há quase dois anos e se não ficar provado que ele encomendou o crime, a coisa vai ficar ruim para a nossa polícia e, especialmente, para o Poder Judiciário.

Um segredo se foi. Faltam dois

Por José Cleves em 27/11/2012 na edição 722

 O balanço do primeiro julgamento de dois dos cinco envolvidos na morte de Eliza Samúdio, encerrado na sexta-feira (23/11) em Contagem (MG), foi em parte elucidativo, pela condenação de dois dos réus, e negativo pelo espetáculo midiático proporcionado por advogados despreparados que deram canseira nos jornalistas e na juíza Marixa Fabiane Lopes Rodrigues. Os advogados deram tanto trabalho que ficou a impressão de que a imprensa ainda não está preparada para coberturas online de acontecimentos mutantes, motivando idas e vindas de informações levadas a público como uma pedra bruta, sem qualquer polimento.

De qualquer forma, foi bom expor a bagunça que virou a advocacia criminal de Minas que, infelizmente, por falta de senso crítico de boa parte da imprensa, não foi tão criticada. A OAB deve uma satisfação ao público sobre o pífio desempenho de seus inscritos no tribunal que, ironicamente, leva o nome de um dos mais respeitados criminalistas do país, Pedro Aleixo (1901-1975), que soube honrar o nome da advocacia mineira em meados do século passado. Depois de se destacar nos tribunais como um orador quase imbatível, Pedro Aleixo entrou para a política nacional e, como vice-presidente da República, protagonizou um fato histórico ao ser impedido de tomar posse pelos militares com o afastamento do então presidente Costa e Silva, por motivo de doença, em 1969. Nos tribunais de Minas, a sua defesa mais marcante foi a das irmãs Poni, inocentadas por ele num julgamento histórico ocorrido em 1964 na cidade de Ouro Preto.

Foi, portanto, no fórum que leva o nome desse baluarte da advocacia que seus pares deram o espetáculo vexatório visto, lido e ouvido por todo o Brasil ligado online pela tecnologia moderna da internet, satélites e a telefonia móvel com as suas incríveis micro-câmeras.

Levada para a morte

A bagunça dos advogados serviu, no entanto, para o desmembramento do julgamento e a elucidação de uma das três dúvidas que pairavam sobre o verdadeiro destino de Eliza – ou seja, se a moça foi realmente assassinada, onde está o corpo e quem mandou matar. A primeira dúvida foi desfeita com a condenação de Macarrão, que disse ter levado a moça “para a morte”. Portanto, com a decisão dos jurados de condenarem o braço direito do goleiro a 15 anos de prisão – e a sua ex-namorada Fernanda Gomes a cinco anos –, está descarta de vez a hipótese absurda levantada pelos advogados de defesa de que Eliza poderia estar viva.

A tese reporta à “síndrome dos Irmãos Naves” e seria bem-sucedida se não houvesse no processo relatos tão claros de que a vítima desapareceu nas mãos de tanta gente. O criminalista Rui Pimenta copiou o seu colega Ércio Quaresma ao sustentar a hipótese fantasiosa de que a moça poderia estar no Leste Europeu e se deu mal. Foi dispensado do caso pelo próprio Bruno, que estava na expectativa de ver Macarrão confessar o crime. A bravata da defesa passou longe do alvo e contrariou ainda mais os jurados, que não aceitaram qualquer possibilidade da não existência do crime de morte.

Desfeita essa dúvida, formou-se o convencimento pleno que resultou nas duas condenações. Restam, agora, outras duas dúvidas: onde está o corpo de Eliza e se Bruno é ou não o mandante do crime. A primeira somente será desfeita com a localização dos restos mortais da vítima. Já o mistério sobre se Bruno mandou ou não matar a mãe de seu filho pode ser elucidado por meio de uma argumentação oral robusta, já que não há prova técnica de mando do crime. O que há são provas circunstanciais que levam a essa hipótese, mas, como bem diz a palavra, são suspeitas, não uma comprovação, e isso confunde a cabeça dos jurados.

Coronel também mandou matar

Envolvido o goleiro está até o pescoço com o crime, mas a literatura jurídica é farta em episódios dessa natureza, onde o fato aparentemente verossímil é de vão pensamento, pela ausência de provas positivas do mando. Posso citar aqui dez ou mais julgamentos famosos onde a argumentação oral da defesa desfez suspeitas bem mais robustas, pelo simples fato de o advogado colocar na cabeça dos jurados que hipóteses, suspeitas, ilações e conjecturas acerca de um determinado fato não significam a sua existência.

Vamos a um exemplo clássico desse tipo de embate. Tenho certeza que o coronel do Exército Lauro Rieth foi quem encomendou a execução do repórter do Correio Braziliense Mário Eugênio em 1984. Rieth era secretário de Segurança Pública do DF à ocasião do crime, não gostava do repórter, chegou a mandar desarmá-lo na redação do jornal, editou portaria proibindo-o de entrar nas repartições policiais, falou que desejava o sumiço do jornalista e omitiu informações sobre a execução levada a cabo por policiais civis e militares do Exército envolvidos com o esquadrão da morte no Distrito Federal. Várias testemunhas afirmaram no processo que ouviram o secretário falar a delegados que desejava a morte do repórter e nem a julgamento Rieth foi. A defesa alegou falta de elementos probatórios do mando.

Para este humilde repórter, que cobriu o crime e posteriormente escreveu um livro sobre o caso (Distrito Zero, Maza Edições, 2000), bastava ao secretário desejar a seus policiais de confiança a morte do repórter para que o fato se consumasse. Escrevi sobre isso à ocasião do assassinato e no livro, de forma clara e objetiva.

Temos outros exemplos. Quem da minha idade não se lembra da assertiva do coronel Amaury Kruel, chefe de polícia da antiga capital federal, Rio de Janeiro, que, no final dos anos 1950, sucumbiu diante da pressão dos comerciantes vítimas de constantes assaltos contra os carros de entrega de bebidas e cigarros, principalmente, e desejou a morte dos bandidos, fato esse que resultou na execução sumária de inocentes na Baixada Fluminense?

O espetáculo midiático

Pois então, o famigerado grupo de justiceiros da polícia carioca, que a imprensa chamava de Esquadrão da Morte, originou-se dessa ordem tácita. O repórter Amado Ribeiro (o pupilo de Samuel Wainer naquele episódio da matança de mendigos no governo Carlos Lacerda e citado por Nélson Rodrigues na peça Beijo no Asfalto como exemplo de jornalista sem pudor) foi meu colega de trabalho no Última Hora, já no final de sua carreira. Ele me garantiu que os Homens de Ouro da polícia carioca, criados depois para combater o Esquadrão da Morte – e que disseminaram ainda mais a matança de inocentes – “apenas” cumpriam a vontade de seu chefe, Euclides Nascimento, o Garotão, autor da célebre frase “Bandido bom é bandido morto.”

“Ninguém de cima mandava matar, mas o serviço agradava e promovia quem matava mais”, revelou-me Amado Ribeiro. Sua relação com o EM era tão próxima que ele era informado de véspera pelo grupo de extermínio onde ia acontecer a execução. Ele chamava o oráculo da morte de Sombra e a notícia rodou o mundo.

Faço essas reflexões para dizer que Bruno, com todo o seu poder de goleiro famoso e rico naquele meio insignificante e pobre, poderia, com um simples estalar de dedos, ordenar, mesmo sem querer, a morte de Eliza, fato esse que se consumaria pela obediência de seus subordinados. Penso que nem precisaria pagamento porque o segredo valia mais do que uma pequena pilha de notas de R$ 100. Bruno estava em vias de ser transferido para o Roma, da Itália, onde naturalmente faria fortuna e quem detivesse um segredo como esse ganharia muito com a extorsão.

A questão, no entanto, é transformar essas ilações em culpa formal. Não há, no inquérito, prova de que o goleiro pagou alguém para matar a moça, como divulgou a Folha de S.Paulo, que auditou o processo e descobriu “10 buracos” do inquérito, sendo um deles o da não comprovação, através de extrato bancário, de que Bruno pagou R$ 30 mil a Macarrão para “fazer o serviço”.

Esperamos, pois, que até o julgamento de 5 de março – quando o restante do grupo comandado por Bruno sentará novamente no banco dos réus – parte dessas falhas tenham sido reparadas, se é que isso é possível. Do contrário, teremos mais um circo armado no Fórum de Contagem, mais por culpa de alguns dos advogados do que da imprensa crítica que voltou a mandar mal, porém, quase que forçosamente.

Não há como fugir do espetáculo midiático diante de tantas peripécias como a que vimos neste primeiro julgamento do Caso Bruno.

 

Dezembro/2012

O olhar crítico do juiz

Por José Cleves em 04/12/2012 na edição 723

 Detesto falar de problema racial, mas tem hora que a coisa vai além da medida. O ministro Joaquim Barbosa já está com o saco cheio pelo estereótipo da imprensa que vincula tudo o que ele faz com a cor da sua pele, como se fosse a coisa mais estranha do mundo um negro ser inteligente, competente e poderoso. Ora, a arte, pelo menos essa, nos ensina que o talento independe de cor, credo, raça e até do caráter e inteligência porque é nato, vem de nascença, do dom que a pessoa tem para aprender e executar determinadas atividades dificílimas para outros mortais, ainda que tente com mais tempo e recursos do que o que já nasce pronto.

Joaquim Barbosa nasceu talentoso e o seu talento associado à inteligência, boa memória e disposição para a luta, o fez um sábio, não um gênio, mas um homem raro, como tantos outros que temos por aí, alguns vivendo no anonimato, por falta de oportunidade na vida, e outros contribuindo para o bem e/ou para o mal da humanidade, depende de como a pessoa emprega o seu conhecimento. Pergunto: onde está a cor nisso, se estamos falando de um poder divino, misterioso, endógeno, vindo do cérebro diretamente para os sentidos e os membros, como Aleijadinho, que perdeu os dedos e continuou esculpindo obras raríssimas, ou Beethoven que, surdo, fazia sinfonias igualmente raras, ou o nosso comediante Geraldo Magela, que de cego só tem o nome?

O ufanismo de determinados jornalistas ao vincular tudo que o ministro faz à sua cor nos remete aos clichês antigos e nojentos, quando os senhores da terra e do mar denotavam deslumbramento pela habilidade do escravo, do filho preto da empregada ou do mequetrefe da tábua de pirulito que, às vezes, o surpreendiam por “agir como os brancos”.

O quanto a sociedade é insignificante

O saco de Joaquim Barbosa já estourou há muito tempo com essa badalação em torno de seu nome. Não pelo que ele pode e está fazendo pela nossa justiça, mas pelo deslumbramento que a sua cor provoca na maioria branca que detém o poder no país. Foi aí que ele se voltou para o repórter da televisão, negro como ele, e exasperou-se: “Até você, meu brother, vai ficar me olhando com essa cara de espanto como os brancos?”

O mundo já sofreu e ainda sofre muito por conta da cor da pele, principalmente da pele negra, que é a mais discriminada. Hitler foi elevado ao posto de satanás-chefe por conta da matança que promoveu defendendo uma raça pura, ariana, mas a pólvora em forma de cones disparados das armas legais em regimes controlados pela maioria, independentemente da cor e da raça, continua matando muito mais as pessoas de pele negra do que branca. No Brasil, onde essa cor de pele é predominante, preto, pobre e puta costumam ter valor igual, mais pelo peso que a cor da pele tem do que pela falta de dinheiro e a safadeza. Aliás, preto e pobre, que Nélson Rodrigues chamaria de “óbvio ululante”, no feminino dá puta, na visão da sociedade mesquinha.

Enganam-se os mestres da escola sociológica e da antropologia criminal que desassociam a origem da violência urbana da formação humana, o homem como produto do meio, e nessa concepção etimológica do crime deve ser levada em consideração a cor da pele, não como fator da violência, mas como reflexo dela, porque temos, nesse caso, a questão da ressonância. O elemento branco vê o negro e logo há uma reação de espanto ou de repugnância, dependendo do que faz o indivíduo que ele está vendo.

Se ele não agrada, roga praga, distancia, e se acha interessante o que o cara faz, demonstra espanto, do tipo: Oh! Ele é ótimo, legal, interessante, diferente. É esse sentimento que faz os Joaquins da vida saírem do sério porque somente eles, que têm família da sua cor negra, sabem o quanto a sociedade é insignificante. É como dizia o meu ídolo Bob Marley: “Enquanto a cor da pele for mais importante que o brilho dos olhos, haverá guerra.”

Em tempo: Deu no Globo (29/11): “Enquanto o número de homicídios de brancos caiu 25,5% no Brasil, entre 2002 e 2010, o de negros aumentou 29,8%. Em números absolutos, o total de vítimas negras subiu de 26,9 mil, em 2002, para 34,9 mil, em 2010, ante uma redução de 18,8 mil para 14 mil nos assassinatos de brancos, no mesmo período. É o que revela o ‘Mapa da Violência 2012 – A cor dos homicídios’, divulgado nesta quinta-feira pela Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial.”

Fevereiro/2011

A incrível classe média e o ameaçado macaco Sauá

Por José Cleves em 15/02/2011 na edição 629

 É emocionante como a sociedade civil brasileira se organizou para a defesa do meio ambiente. Nada no país é tão organizado e veemente quanto essa militância que se multiplica a cada dia em todo o território nacional. O curioso é que a estratégia utilizada por esse exército de voluntários é liderada por elementos da classe média, a mesma acusada de apoiar o golpe militar de 1964, em oposição à luta operária e estudantil, numa demonstração clara de que houve uma mudança de comportamento e de mentalidade desta classe social em todo o país.

Muitos dirão que a classe média brasileira continua a mesma, pragmática, anti-social, racional, omissa e narcisista, mas ninguém poderá tirar dela a grande contribuição que vem dando ao país na defesa do meio ambiente. Por que essa mesma classe média continua fugindo do debate político, não sei. Talvez pela banalização da corrupção no país, que seria o mesmo motivo pelo qual a classe estudantil se distanciou dessa causa. Aliás, estamos vivendo hoje um longo jejum político das classes sociais no país. A operária e a sindical também perderam força, dizem que é pelo desencanto com o PT.

Informação, prevenção e ação

Mas, afinal, qual o setor da camada social brasileira está mais engajada politicamente? A classe C em diante virou lulista e é hoje o fiel da balança nas pesquisas políticas. A razão dessa idolatria não é partidária e muito menos política. É a opção por um governo generoso com os programas sociais elaborados para erradicar a miséria. Estudo o comportamento das classes sociais brasileira há anos. Principalmente a da classe média na área ambiental. Não através da imprensa porque a principal fonte dos jornalistas, neste assunto, continua sendo de origem política, intelectual e/ou de organismos internacionais que valorizam muito mais as pesquisas do que os estudos realísticos dos acontecimentos.

A análise que faço origina-se de estudos feitos na raiz do fato. Os exemplos são muitos. O registro mais recente que presenciei desse exército de voluntários anônimos na defesa da natureza brotou nas imediações do Córrego do Tamanduá, uma reserva aquífera e florestal adjacente à Estação Ecológica de Fechos, no município de Nova Lima, cuja sede fica a pouco mais de 20 km de Belo Horizonte. A área fica próxima à Mina de Tamanduá, da Vale, que segundo os ambientalistas, quer expandir a sua atividade mineradora para os lados da reserva vizinha a Fechos. A notícia soou como uma bomba nos condomínios próximos e logo surgiram os primeiros militantes espalhando o fato na comunidade. Aos poucos, e sem alardes maiores, os ambientalistas desentocaram-se, um a um, silenciosos como uma presa às vésperas de um ataque fulminante do inimigo.

A ação é organizada e, como sempre, liderada por pessoas da classe média. A resistência começou com trabalhos na comunidade, dentro do princípio de que o vizinho é o melhor amigo, por isso ele deve ser informado, protegido e trazido para a base do movimento. Com a vizinhança em alerta, o comando acionou o seu serviço de inteligência que direciona o plano de ação baseado na trilogia informação, prevenção e ação.

O mascote do movimento

Tudo isso feito em horas de folgas de médicos, engenheiros, advogados, jornalistas, juristas, enfim, dos elementos da inteligência. Algo parecido com a estratégia de guerrilha, que recomenda um amplo conhecimento do terreno a ser ocupado. O site Primo – Primatas da Montanha (nome da ONG criada para proteger a reserva) funciona como uma cartilha. Nele, os voluntários encontram informações técnicas acerca do bem a ser protegido, mas a tática de "guerra" é algo extremamente secreto.

Feito o trabalho comunitário, os ambientalistas partiram para a ação preventiva e protocolaram na Justiça uma representação contra a Vale, informando o Ministério Público do risco que a reserva está correndo, caso a empresa consiga o licenciamento ambiental para ocupar a mata. O passo seguinte foi a mobilização da imprensa. É aí que eu entro nessa história. Fui apresentado a um dos militantes pelo professor Fernando Massote, um defensor intransigente do meio ambiente e da democracia. Pela segunda causa, foi expulso do país e depois anistiado. Infiltrei-me no movimento e fui encarregado de auxiliar na divulgação do fato. Participei da última oficina de trabalho da "guerrilha", que fez um boneco do macaco Sauá, que habita a mata ameaçada e está em extinção. O primata é hoje o mascote do movimento e vai desfilar no carnaval de São Sebastião de Águas Claras, distrito mais conhecido por Macacos, onde estão as principais reservas naturais da região.

Disposição para o compromisso

Por dever de ofício, avisei que, como jornalista e defensor intransigente da democracia, a nossa causa maior, eu tinha a obrigação de ouvir a Vale para preservar a equidade da notícia. A Vale deu a sua versão, de que não há projeto algum de expansão da Mina de Tamanduá, mas os ambientalistas não estão convencidos disso. Para eles, o ataque virá – não se sabe o dia e a hora, mas virá. O importante nisso tudo é a entrega desses elementos da classe média na defesa desta causa. É uma vigilância 24h, para a mobilização e a formação da opinião pública. O alvo é o agente causador do dano, que pode ser prejudicial ao homem ou a um grilo.

O importante para os ambientalistas é a preservação da vida. Às vezes há exageros. Mas é melhor errar por excesso de cuidados do que por omissão. Fico imaginando que se essa mesma disposição valesse para a defesa dos direitos humanos, do consumidor, da moralidade dos serviços públicos, entre tantos outros, teríamos um país-modelo no mundo. Falta, talvez, para uma entrega maior da classe média nestas causas, uma outra Eco-Rio, nos moldes da conferência de 1992, porém, voltada para o combate à corrupção, por exemplo.

Seria a grande oportunidade para a classe média assumir de vez a responsabilidade pela defesa de todos os interesses da sociedade, pela sua formação intelectual, disponibilidade de tempo, o compromisso com a comunidade e a importância histórica para a mudança social do país. Disposição para isso, ela tem e vem provando isso a todo momento, quando o assunto é meio ambiente.

Outubro/2011

O livro sobre a vida e obra do jornalista

Por José Cleves em 25/10/2011 na edição 665

 Enquanto os sinos dobram anunciando o fim do jornal de papel – ou do jornal que tem dono –, as estrelas apontam para a internet, o veículo mais democrático e silencioso do mundo, sem concorrentes à altura e limites de informação. Gente de todo o planeta e idade, sem discriminação de credo, sexo, raça e opções políticas, redige o seu conteúdo, filmando e congelando imagens que se multiplicam numa velocidade inacreditável. Ninguém escapa dos celulares que mostram, por exemplo, a prisão e morte do ditador líbio Muamar Kadafi em Sirte. Uma das fotos exibindo o ditador ainda vivo, montado por um rebelde, foi divulgada dia 20 pela agência AFP para o mundo inteiro, numa cena confirmada pela TV Al Arabiya. Estes registros históricos nos levam à seguinte conclusão: o maior legado da internet é, definitivamente, a sua grande contribuição para a democratização da comunicação no mundo.

Faço essas reflexões para provar o atraso e as injustiças da imprensa paga, seja ela impressa ou eletrônica, daqui ou do primeiro mundo, porque são todas iguais. É um mundo de gente trabalhando para registrar fatos conforme a conveniência dos donos, de modo que existe uma diferença entre o fato registrado e o editado – e pior, o segredo guardado é bem maior do que o publicado porque este passa a ser o bem maior dos poderosos que usam estas informações segredadas como moeda de negociação. É por essas e outras razões que não me canso de soltar fogos para a internet, que veio ao mundo para mostrar aos poderosos que a informação de interesse público deve ser um bem social a serviço de todos, e não de grupetos.

Vou registrar aqui um exemplo prático de injustiça cometida pela imprensa atrasada. Dia 13/10, o foyer do Palácio das Artes de Belo Horizonte registrou um dos acontecimentos literários mais importantes de sua história: o lançamento do livro sobre a vida e a obra do jornalista Dídimo Paiva que, sem nenhum favor (não uso meus dedos de jornalista para fazer elogios de graça), é o maior patrimônio da imprensa mineira. Um dos maiores do país, pela competência, seriedade, ética, dignidade, coragem e, acima de tudo, comprometimento com a notícia verdadeira. Profissionais do gabarito de um Alberto Dines (que Dídimo me mandou convidar ao ler no Observatório o artigo que escrevi sobre essa sua obra literária) sabem o que representa este jornalista de 83 anos de idade para os mineiros.

Injustiça  contra o mestre

Basta dizer que ele comandou a opinião do jornal Estado de Minas durante mais de 40 anos sem nunca ter tirado proveito disso para benefício próprio, embora fosse o jornal um monopólio poderosíssimo. Praticamente o único do estado durante quase todos esses anos. Enfrentou ditadura, pressão externa e interna, vaidades, assédios, se meteu nas lutas sindicais por melhores salários, brigou, xingou, não aceitou imposições, defendeu colegas de trabalho injustiçados, fez manifestos contra a ditadura, elaborou o Código de Ética da profissão de jornalistas, desafiou deputados e governadores, contrariou interesses dos donos de jornais e sobreviveu a tudo isso. Comprou um fusquinha, o seu único carro, e um apartamento, onde mora dignamente com a sua mulher, Cidinha. Já no final da vida, um grupo de amigos, entre os quais me relaciono, tentou convencê-lo a escrever a sua autobiografia, mas a idade avançada e a dificuldade para escrever no computador impediram tal proeza. Foi quando os ex-companheiros de sua época de presidente do Sindicato dos Jornalistas Washington Tadeu de Melo e Paulo Lott, mandaram fazer o livro, escrito por Alberto Sena e Tião Martins, com pesquisa de André Rubião.

Pois bem. Peço o favor de não me perguntarem o destaque que a imprensa atrasada, em especial o jornalEstado de Minas, deu a este acontecimento. Eu não teria justificativa a dar aos incompetentes que comandam os veículos de comunicação de Belo Horizonte, com merecidas ressalvas, é claro. Mas, em contraposição, posso responder com o peito estufado de alegria que a mídia virtual lá esteve e retratou à altura esse extraordinário acontecimento, conforme ele merece. Blogueiros, tuiteiros, membros de redes sociais, palpiteiros, enfim, internautas de todas as linhagens, empregados ou não, registraram o fato na internet, não deixando que a injustiça cometida pela impressa atrasada maculasse a alma de nosso grande mestre.

Portanto, assim como a morte de Kadafi não saltou aos olhos de águia dos internautas, que a registraram magnificamente, a homenagem ao nosso grande jornalista Dídimo Paiva também foi para a história porque este é o sentimento que une os internautas e a classe jornalística – retratar fatos, dando-lhes destaques conforme a sua magnitude.

Novembro/2011

O problema é o cigarro dele

Por José Cleves em 08/11/2011 na edição 667

 Estou acompanhando de perto o câncer de Lula e o da saúde pública – este parece não ter cura – e fico pensando no estrago que essa doença tem feito no Palácio da Alvorada. Pegou o vice José Alencar, a atual presidente Dilma e agora o ex Lula, xodó do Brasil.

Dizem que o de Lula foi causado pelo cigarro. Odeio esse vício que fez o meu avô (e um neto dele) perder uma das pernas. Fez também meu pai sofrer como um condenado antes de morrer de enfisema pulmonar. Aliás, fui escravo duas vezes dessa maldição. Aos sete anos de idade, meu avô, Antônio Rodrigues Milagres, com quem fui criado, obrigou-me a ser o seu picador de fumo de rolo, uma espécie de assistente de fumante. Às vezes, passava horas picando o fumo fedorento de Ubá, MG (o seu predileto), com um canivete suíço para fazer os pacotes de viagem. Cortava as palhas, amarrava os cigarros em pacotes de 10 cada, checava a pedra e o combustível do isqueiro vospic e, depois que meu avô teve uma perna amputada por causa do vício, ainda tinha a obrigação de acender o cigarro e dar aquela chupada para ele experimentar o produto fumegante.

Moral da história: depois de muitos engasgos e tosses alucinantes, viciei no cigarro. Era fissurado num Continental sem filtro e, na falta de dinheiro, pitava o de rolo mesmo. Até que um dia um legista me apresentou o pulmão de um cadáver corroído pelo tabaco e nunca mais coloquei cigarro na boca. Foram mais de 20 anos de escravidão. O pavor que tenho do fumo é tanto que, às vezes, rogo as minhas pragas. A maldição que se abateu sobre o nosso Lula me fez compreender o incompreensível.

Alguns jornalistas estão espantados com a reação de grande parte dos internautas que estão rogando praga no petista, do tipo: “Bem feito, não mandei você fumar; agora toma...” Outros querem que o ex-presidente se trate pelo SUS, em solidariedade ao pobre.

Coisa que não presta

O colunista da Folha Gilberto Dimenstein se diz envergonhado com os comentários feitos a respeito do assunto na sua coluna. O sarro cruel e sarcástico revela, em sua maioria, a verve de um humor negro que, em alguns casos, nada tem a ver com a questão política. É puro sarro mesmo – desalmado, mas é sarro. O problema não é com Lula, é com a sua ex-paixão pelo fumo.

Bom, mas ex é ex, todo mundo tem direito de errar, dirão os moralistas. Não pode é permanecer no erro. Pelo que sei, Lula já abandonou o cigarro faz algum tempo. Ocorre que cigarro não é um ex qualquer. É uma praga tão danosa e apaixonante que, mesmo desprezado, odiado e amaldiçoado pelo seu ex, ele volta para cumprir a sua missão de arruinar o companheiro. Depois que o cigarro fez essa parceria mórbida com o câncer – um vicia e o outro mata – fico pensando no destino cruel que aguarda os tabagistas incautos que, a pretexto de soltar uma fumacinha, abraçam essa ideia de fumante.

Fumo, aliás, virou nome de coisa que não presta neste país. Mulher feia - é fumo! Carro velho e bebedor – é fumo! SUS – é fumo! Aliás, o que tem de fumo no Brasil não é brincadeira.

Quer ver um exemplo de fumo brasileiro repugnante, daqueles de dar nojo? Experimente um dia ser manchete de jornal e leia a notícia no dia seguinte. É como diz um amigo, a despeito da maldade jornalística: uma coisa é uma coisa; outra coisa é outra coisa. Tem os bons e os fumos.

Abril/2011

A arma de fogo e o seu segredo

Por José Cleves em 12/04/2011 na edição 637

A tragédia de Realengo nos remete à seguinte situação: já que o governo não tem controle sobre o seu estoque de armas – e nem satisfação dá à sociedade sobre isso porque, sendo as licitações sigilosas, ninguém pode saber quantas armas a polícia tem (sic) –, o Congresso tem a obrigação de criar leis que nos garantam o direito de saber, por exemplo, a origem das armas adquiridas pelo louco que invadiu a escola e matou 12 crianças.

Este tipo de numeração antiga dos armas de fogo, fácil de ser raspada, facilita a queima do arquivo e já deveria ser substituída ou reforçada por outro registro que impossibilite a sua destruição. Antigamente, os carros padeciam do mesmo mal e isso foi resolvido com meios mais complexos de identificação, exatamente para evitar as fraudes. Ora, desde quando o carro é mais importante que uma arma de fogo em um país que não tem controle sobre este tipo de produto?

Falo isso com a autoridade de quem sempre se preocupou com o comércio ilegal de armas no país. Aliás, foi por conta de uma investigação que eu fazia a esse respeito que a polícia tentou me colocar na cadeia, como pode ser visto no meu livro A Justiça dos Lobos – por que a imprensa tomou o meu lugar no banco dos réus (Biográfica; 2009).

Numeração é fácil de ser raspada

As armas utilizadas pelos chamados criminosos ocasionais (ladrões etc.) normalmente foram adquiridas através de licitações pelo Estado para abastecer as suas corporações e acabam alimentando o submundo do crime através de um comércio rotativo: elas são vendidas, tomadas e devolvidas à criminalidade, numa constante troca de mãos e de favores, à luz do dia e com o conhecimento da imprensa que, infelizmente, às vezes somente aparece quando há o disparo criminoso da arma.

Alguma coisa mais inteligente e útil tem que ser feita. Uma delas, é a abertura dessa caixa-preta que são as licitações de armas oficiais no país. O controle é feito pelo Exército e as licitações são fiscalizadas pelos Tribunais de Contas dos estados, que se preocupam unicamente com a licitude das compras. A questão não é essa. Se a polícia, militar ou civil, pede a compra de 10 mil armas, é preciso saber por que esse número, se a tropa continua sendo a mesma. O controle tem que ser rígido.

Outra questão é quanto à identificação do produto. Pelo modelo vigente, as numerações são externas, fáceis de serem raspadas. Seria o caso, então, de se esconder o registro em um local crucial, somente passível de destruição com a perda total do produto. E toda arma utilizada para algum crime teria que ser reciclada pelo fabricante, por ordem judicial. Isso impediria a reposição da mesma, da forma que vem ocorrendo.

Uma CPI da caixa-preta

Entendo que somente assim seria possível haver um controle mais rígido e fiscalizador das armas de fogo no país. Os procedimentos usados para a questão do porte legal são corretos e eficientes, mas o uso indevido da arma não está intrinsecamente ligado a este comércio que, reafirmo, é rigoroso. Bandido não faz uso deste comércio ilegal. Ele age no paralelo. E o paralelo é abastecido pelas corporações, não tenho a menor dúvida disso. Qualquer repórter sabe disso. Basta o mínimo de senso crítico e de capacidade cognitiva para entender que a coisa funciona assim no Brasil. Ora, se é assim, por que não se muda isso? O sistema é segredado exatamente porque ninguém pode saber o que ocorre nesse meio. Nem os fabricantes de armas podem falar sobre o assunto.

Não guardo boas memórias das CPIs, mas seria o momento de se instalar uma delas na Câmara Federal para abrir essa caixa-preta e buscar alternativas seguras para melhor identificar as armas de fogo em nosso país. Pelo menos isso.

 

Julho/2011

Os horrores da imprensa em manuscrito

Por José Cleves em 19/07/2011 na edição 651

 

Recebi um manuscrito com 32 páginas em papel ofício escritas pelo médico capixaba Césio Flávio Caldas Brandão, condenado como o “Monstro de Altamira”, o rumoroso serial killer que castrou e matou várias crianças nesta região do Pará no início da década de 1990. A correspondência me foi enviada em 13 de junho deste ano de uma das celas do Centro de Recuperação de Coqueiros – CRC-PA, mais conhecido como Presídio de Americana. Nela, o médico jura inocência e apresenta detalhes surpreendentes do caso. São relatos extraídos de um processo confuso, movido pela catarse.

A carta ratifica a notícia sobre a prisão do verdadeiro monstro, o mecânico Francisco Chagas, preso no Maranhão, onde se deu a segunda etapa do ritual satânico que vitimou “mais de 40 crianças”. O criminoso, o mecânico Francisco Chagas, confessou ser também autor da primeira fase da matança no Pará, legitimando a defesa do médico que, por ter sido condenado a 56 anos, com trânsito em julgado, está agora brigando pela revisão criminal do processo. Algo complicado em nosso país, principalmente porque, mesmo com o assassino assumindo a culpa no Maranhão, a polícia e o Judiciário do Pará terão que reconhecer amea culpa e investigar direito o caso com base neste fato novo.

Pelo que li e pesquisei, houve uma sucessão de erros do Estado e da mídia contra os direitos fundamentais do cidadão acusado, que terá agora de ralar para tentar provar o que não fez. A família vem tentando, com o senador Magno Malta, que é daquela região do país, uma força política para que o médico aguarde essa bagunça em liberdade. É o mínimo que as autoridades podem fazer por Césio e seu colega de profissão Anísio Ferreira, também condenado no mesmo caso.

A chance de ouvir o outro lado

A bem da verdade, nunca se teve a convicção plena da culpa dos réus. O juiz negou a pronúncia, por falta de provas, mas a decisão foi revista e o médico acabou sendo levado a julgamento. O conselho de sentença também ficou em dúvida, mas diante do clamor público provocado pelo estardalhaço da imprensa que legitimou a acusação policial em letras garrafais, quatro dos jurados votaram pela acusação. Com 4 a 3 no placar favoráveis à condenação, o processo seguiu para as instâncias superiores sob forte pressão da mídia e, finalmente, transitou em julgado.

A questão, agora, é a seguinte: a polícia maranhense, que já soltou todos os acusados presos inocentemente pelo caso, terá que concluir o inquérito sobre o serial killer com a ajuda da polícia paraense, sem erro, e remetê-lo à Justiça para que essa possa instruir o processo, também sem erro, e finalmente levar o culpado a julgamento. Uma vez condenado o verdadeiro assassino, o médico e os demais envolvidos ficam livres. Aliás, ao mandar soltar os réus, por força de um habeas corpus concedido em 2010, o ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STJ), classificou o caso como “o maior erro judiciário brasileiro”.

Não me perguntem o motivo pelo qual os réus estão até hoje presos. Se o médico me autorizar a divulgar o teor da carta, o público leigo e a imprensa terão a oportunidade única de tomar conhecimento do que ocorreu, na versão de um dos acusados, para o julgamento justo do caso. Sempre digo que a equidade jornalística de qualquer fato controverso está na oportunidade de se colocar nos dois pratos da balança, a acusação e a defesa, para medir, da forma mais natural possível, qual das duas pesa mais. Como a versão policial já é conhecida do público, essa é a chance que temos de ouvir o outro lado, através de um relato feito pelo réu em tom de desabafo, na primeira pessoa, portanto, sem intermediário.

De vítima a culpado

Por dever de ofício, curiosidade e pedidos de amigos do médico para que fizesse alguma coisa para mostrar ao Brasil as injustiças cometidas – no mínimo, contra os direitos fundamentais do cidadão –, estudei o caso com um único propósito: revelar os erros processuais e os da imprensa. A verdade, a gente nunca sabe onde está, mas após criteriosa análise do caso, cheguei à conclusão de que a espetacularização dos fatos, muito conveniente à imprensa bandida, continua fazendo muito mal ao Judiciário, principalmente nos julgamentos públicos. Não estou aqui afirmando que tudo de errado que ocorre no país é culpa da imprensa porque sou parte dela e sei que se não fossem os jornalistas comprometidos com o interesse público este país já teria ido para o brejo há muito tempo.

O trabalho da imprensa é extremamente importante e indispensável para a saúde de nossa democracia. É preciso ter uma atenção muito grande com os poderes constituídos, principalmente o político e o policial – o primeiro, pela facilidade de se meter a mão no dinheiro público, e o segundo pelo mau uso do distintivo. Não há a necessidade de se trabalhar em um grande veículo de comunicação para cumprir esse papel. Eu, que já trabalhei em muitos deles, hoje sou dono de uma folha de taioba na cidade de Nova Lima, a 22 km de Belo Horizonte, onde venho denunciando a bandalheira praticada pela prefeitura local e já obtive bons resultados ao frear, por exemplo, a doação de áreas públicas para grupos privados em troca de favores e sem qualquer interesse público. Isso é o mínimo que um jornalista pode fazer para a defesa do interesse público.

A experiência me levar a crer que o erro (ou dolo) da polícia e, eventualmente, da Justiça ocorre por incompetência e falta de equilíbrio emocional dos agentes públicos para suportar aos efeitos midiáticos do fato, levando inocentes a pagar por crimes não cometidos. Aliás, foram erros assim que por pouco não me colocaram na prisão no episódio da morte de minha mulher, em 2000, quando a polícia – e a imprensa que a copiou – me transformou de vítima em culpado (A Justiça dos Lobos – Por que a imprensa tomou meu lugar no banco dos réus: Bigráfica, 2009).

Peça dantesca

São também erros desta natureza que levaram a polícia e o MP a falharem no não menos rumoroso Caso Villela, em Brasília, onde a arquiteta Adriana Villela vem sendo acusada de matar os pais (o ex-ministro do TSE José Guilherme Villela e a mulher), num processo vergonhoso para a polícia do DF. Adriana, a exemplo de Césio e outros mais, também me procurou pedindo ajuda. Estudei o seu caso e fiquei horrorizado com o que vi. Mais uma vez, a atuação da polícia e a falta de questionamento da imprensa bagunçaram tanto o processo que, independentemente da culpa ou não da acusada (eu a inocento por falta de provas), o correto seria rasgar tudo que foi feito até o momento e começar do zero. Aliás, se eu fosse juiz do caso faria exatamente isso.

A impressão que tenho é de que a maioria dos nossos jornalistas não está preparada para trabalhar com fatos controversos e de grande apelo popular. O clamor público provocado pelo efeito midiático das publicações de fatos desta natureza revela as ilações fantasiosas, criadas à luz dos holofotes de uma imprensa irresponsável, que retrata fatos sem o mínimo de senso critico. Apenas copia o que ouve e lê, aplicando critérios da polícia, em detrimento dos métodos jornalísticos. Não há esforço cognitivo em benefício do interesse público. Visa ao ibope, ao espetáculo, como se estivesse registrando capítulos de uma novela levada ao ar em tempo real.

Este tipo de jornalismo de baixo nível continua produzindo mitos, falsos ídolos e falsos bandidos com a mesma facilidade que se escreve uma peça dantesca. Veja, em um trecho da carta de Césio Brandão, o que ocorreu no dia 10 de julho de 1993, horas após a sua prisão.

“(...) O delegado telefonou para a Rede Brasil Amazônia de Rádio e TV que noticia com exclusividade que foi preso o Monstro de Altamira, o médico Césio Brandão...

A busca incessante da verdade

Ou seja, fabricou-se um monstro em questão de horas, como se a notícia retratasse um fato notório, e não controverso, com base na afirmativa de um delegado. O mesmo tipo de noticiário bombástico foi ao ar tempos depois, com a prisão do criminoso confesso dessa história maluca, o mecânico Francisco Chagas. Ele disse ter vivido em Altamira de 1977 a 1993 (o serial killer de Altamira começou em 1989 e terminou em 1993, segundo os registros policiais). O bandido mudou-se em 1994 para São Luís, no Maranhão, quando teve início a segunda etapa da matança, com as mesmas características. Tudo isso relatado à polícia maranhense que, diante das evidências do crime, soltou todos os suspeitos presos erroneamente pela matança de crianças nesta segunda fase do serial.

Não conheço os autos, mas tenho conhecimento de seu conteúdo que me foi revelado por uma promotora de justiça com larga experiência em júri popular. Ela se diz estarrecida com tantos erros. Praticamente decorei a versão do acusado, pela carta que brevemente compartilharei com vocês.. A versão policial é tão abstrata e tênue, que pode ser resumida em cinco linhas. Não há sustentação legal para se falar, por exemplo, em provas. Há um imaginário, do tipo alguém que parece com alguém, conforme o relato de alguém, portanto, sem objetividade jurídica e/ou clareza científica.

A história nos faz lembrar o filme 12 Homens e uma Sentença, produzido em 1957, com o irretocável Henry Fonda. Uma testemunha diz que o réu era o homem que vira nas proximidades do local do crime e leva 11 jurados a condená-lo. Mas, na sala de votação do conselho de sentença, um dos jurados pede provas mais contundentes e ao final os 12 absolvem o suspeito, tamanha era a fragilidade das provas exibidas em juízo. Valeu o senso crítico e a sensibilidade de um entre os 12 jurados para determinar sobre o real e o irreal, o fato e o suposto fato, para convencer os demais de que sem provas não se pode condenar ninguém, mesmo diante da catarse provocada pela publicidade do ocorrido. É exatamente isso que separa o bom do mau jornalismo. A busca incessante da verdade, independentemente do que dizem e do que falam as pessoas. Vale a coerência dos fatos.

Senso crítico e olhar cético

É sempre bom lembrar que fato é um só, não existem dois. Está provado que o autor (ou autores) do crime praticado em Altamira é o mesmo dos cometidos no Maranhão, pela sua peculiaridade, o modus operandi e o perfil das vítimas. Essa é a base da investigação que caracteriza o serial killer. Se alguém assume a autoria destes crimes, resta à polícia confrontar os fatos, efetuar a reprodução simulada dos mesmos, checar datas, deslocamentos do acusado, analisar patologias e laudos criminológicos; debruçar-se sobre os demais apontamentos, conferir tudo. Feito isso, fecha-se o caso. É impossível, à luz do Direito e da natureza, tornar inverossímil algo revelado e provado pela lógica, como os pontos em comum dos achados científicos que nos dão a certeza de que alguém fez realmente aquilo que diz porque o que essa pessoa fala bate com o que foi apurado.

Quanto à imprensa, cobra-se dela apenas o senso crítico e o olhar cético de quem tem a obrigação de questionar aquilo que não lhe é apresentado com a clareza dos fatos notórios.

Setembro/2011

Juíza proíbe revista de circular

Por José Cleves em 12/09/2011 na edição 659

 A decisão da juíza Adriana Garcia Rabelo, da 1ª instância de Nova Lima, na região metropolitana de Belo Horizonte, de proibir a circulação da edição 65 da revista Viver Brasil na cidade, abre um perigoso precedente na comarca, em desfavor da liberdade de imprensa e do direito sagrado do cidadão de tomar conhecimento do que vem ocorrendo na prefeitura. Em reportagem, o prefeito Carlinhos Rodrigues, do PT, é acusado de improbidade administrativa. O caso é tão grave que pode o efeito intimidatório da liminar, deferida pela juíza na semana passada, resvalar na autonomia dos poderes, já que um dos vereadores oposicionistas também teve o seu direito de denunciar o prefeito proibido recentemente, sob pena de pagar multa de R$ 100 mil. A revista, de circulação nacional, ainda não se pronunciou sobre o caso.

A liminar foi requerida pelo prefeito, que se diz ofendido moralmente com a reportagem feita pela repórter Janaina Oliveira. A jornalista se valeu de denúncias do Ministério Público e de algumas decisões já transitadas em juízo, nas quais o prefeito é acusado de improbidade administrativa em várias ações movidas pelo MP. Portanto, não há motivo para a juíza proibir a população do município, de 81 mil habitantes e um orçamento anual de R$ 300 milhões, de tomar conhecimento das denúncias contra o prefeito. Até porque, se a revista errou, como alega o prefeito, cabe a ele acioná-la judicialmente, como ocorre em qualquer situação desta natureza.

A decisão da juíza parece intempestiva porque ela vai de encontro a um direito fundamental, que é a liberdade de expressão, para proteger um agente público que teve recentemente o pedido de bloqueio dos bens e afastamento do cargo requerido pelo Grupo Especial do Patrimônio Público (Gepp) e que tem advogados e dinheiro público para fazer a sua defesa. Não tem sentido a justiça proibir a circulação da revista porque essa medida pune o povo e também a parte ofendida, pois é sabido que tudo que é proibido aguça a curiosidade, tornando ainda mais cobiçado – aprendemos isso com a ditadura.

Outra doação abortada

Além do mais, é bom salientar que os fatos denunciados pela revista são de domínio público, estão registrados nos anais do Poder Legislativo e nas dezenas de ações movidas pelo MP contra o prefeito pela mesma razão. Portanto, não há nada de novo que o povo não possa saber. Carlinhos sempre defendeu a democracia e a moralidade dos serviços públicos e, por isso, foi eleito e reeleito pelo povo. Fez um ótimo primeiro mandato e estragou tudo no segundo, ao dar margem ao Ministério Público mover contra ele várias ações por crime de improbidade administrativa. Já foi condenado a devolver dinheiro aos cofres públicos e teve que assinar vários Termos de Ajuste de Conduta (TACs) por causa de doações de terrenos do município sem o devido interesse público, é o que afirma o MP. Foi exatamente por conta dessas doações que a revista escreveu que ele, Carlinhos Rodrigues, estava fazendo caridade com o chapéu alheio.

Tanto isso é verdade, que o MP contabilizou 11 doações irregulares de 2005 para cá e obteve de volta 40% do valor doado (algo em torno de R$ 11 milhões), através de um TAC assinado pelo prefeito e 10 dos 11 beneficiados. A promotora do patrimônio público, Ivana Andrade, barrou ainda várias outras doações, como a de um terreno de mais de 360 mil metros quadrados no cobiçado condomínio Alphaville Lagoa dos Ingleses. A beneficiada seria a Aliar Aiccrane Serviço Aéreo Ltda, totalmente desconhecida na cidade. Oprojeto seria votado pela Câmara, em sessão extraordinária convocada pelo prefeito.

Outra doação abortada contemplaria a construtora Engefor, no luxuoso bairro Vila da Serra, à qual seria repassada uma área de dreno pluvial para valorizar o seu condomínio em construção, com três torres de apartamentos, também de alto luxo. Aliás, o prefeito foi reincidente nesta ação porque, mesmo com o MP suspendendo a votação do projeto na Câmara, ele baixou um decreto cedendo o imóvel aos empreendedores por 30 anos prorrogáveis por mais 30, ou seja,ad eternum.

Cabia acionar a revista

O curioso é que, dias atrás, a justiça local deferiu uma liminar obrigando a empresa a desocupar o terreno em questão, que fora fechado como se fosse uma área comum do condomínio. E acabou sendo porque, logo após a saída da oficial de justiça do local, o portão foi novamente fechado, de forma arbitrária e desrespeitosa com a decisão da justiça que agora proíbe a revista de publicar denúncias contra o prefeito.

Um dos argumentos de Adriana Rabelo é de que a reportagem continha informações dadas por um vereador que, segundo a juíza, está impedido judicialmente de fazer qualquer manifestação sobre este assunto. Ora, isso significa censura dupla. O que tem, afinal, a revista a ver com as decisões do vereador José Guedes, do DEM, opositor do prefeito, que tem a obrigação constitucional de fiscalizar o Executivo? Se as denúncias ofendem moralmente o prefeito, que ele acione a revista e o vereador na justiça porque essa é uma das prerrogativas dos ofendidos no Brasil. A lei existe para isso. O que não pode ocorrer é a justiça querer proibir um veículo de comunicação de exercer o seu direito de se expressar, pois isso fere o artigo 5º da Constituição Federal.

Qualquer decisão da justiça que venha a contrariar esse artigo é censura, algo execrável, nojento, próprio dos que ainda não entenderam que vivemos em uma democracia plena, que o povo e a imprensa são livres, têm direito de se expressar, arcando, com isso, a responsabilidade por eventuais danos ao suposto ofendido. Cabia ao prefeito acionar judicialmente a revista para que ela respondesse pelo que divulgou, conforme o previsto em lei. Não poderia a justiça antecipar esse feito, proibindo a circulação da revista na cidade porque isso fere o direito do cidadão de tomar conhecimento de tudo que ocorre com os seus políticos.

Não se pode admitir a autocensura

Quero deixar bem claro que nada tenho contra o prefeito Carlinhos Rodrigues, que sempre me tratou muito bem. É gentil com a imprensa e inteligente. A verdade é que ele é muito mal assessorado e talvez seja este o seu grande pecado. Também nada tenho contra o PT, que por sinal elogiei em recente artigo no semanário local A Notícia, do qual sou editor. É que, entre eles e a liberdade de expressão, fico com a segunda opção, independentemente de qualquer outra relação, seja ela afetuosa ou de negócios porque jornalista que se preste não transige com a censura.

Consultei a revista sobre a decisão da juíza e o seu diretor de redação, Homero Dolabella, informou-me que o caso está em análise no jurídico da empresa. A minha expectativa é de que a revista exerça o seu direito de expressar e brigue por ele até as últimas consequências porque acima do direito de imprensa está o direito do cidadão de ser informado sobre tudo que envolve o interesse da coletividade.

Depois de uma dupla censura, não se pode admitir a autocensura, motivo pelo qual exerço o meu direito de manifestar o mais veemente protesto contra a decisão da juíza, na esperança de que a sua sentença seja refeita o mais rapidamente possível para o bem da democracia e da moralidade dos serviços públicos neste país.

O X-Net da Folha

Por José Cleves em 27/09/2011 na edição 661

 

Folhalançou o Folhaleaks, um canal da Folha.com para receber informações e documentos que possam merecer uma investigação jornalística. A ideia é interessante. É mais uma ferramenta para pescar denúncias de fontes anônimas – na minha opinião, o maior nicho de notícia do mundo, porém difícil de ser conquistado pelo mercado convencional. Copiando o X-9 da polícia, o Folhaleaks seria o X-Net, a versão moderna e virtual do informante da Redação. O receio que tenho é de que isso venha a burocratizar de vez a atividade jornalística.

No mais, jornalismo investigativo é assim mesmo. Se pudesse, contrataria hackers para pescar informações na internet. Aliás, o FBI já faz isso. Quem acompanhou a minha carreira, sabe que sempre usei bandidos para pegar bandidos. Este antídoto sempre deu bons resultados. A busca de informações alternativas é que faz a diferença na vida de um repórter. Este tipo de jornalismo de profundidade – que chamam de investigativo, como se essa não fosse uma prerrogativa do ofício – é focado exatamente nas fontes alternativas de informação. Já o jornalismo oficial trabalha por osmose, ou seja, copia informações de boletins de ocorrência, inquéritos, relatórios e tudo mais que vê pela frente, sem qualquer esforço do repórter para fugir disso.

É preciso destacar que os meios utilizados pelas autoridades judiciais para apurar um fato são diferentes dos praticados pelos meios de comunicação. A coerção da polícia, por exemplo, inibe a informação, que a ela é dada normalmente à luz do Direito. Ou seja, o cidadão, quando se senta no banco dos culpados ou da testemunha para relatar um fato, o faz após consulta ao advogado. Já para o repórter não há essa prevenção. Até porque a maioria das entrevistas jornalísticas são de improviso. Essa é a grande diferença entre o fato policial e o fato jornalístico.

Moralidade dos serviços públicos

Portanto, essa linha paralela proposta pela Folha para a obtenção de fatos inéditos é muito importante porque faz uso de uma ferramenta indispensável. A internet é um lugar comum, de muitas mentiras e bobagens; mas tem ouro, como no garimpo, onde quase tudo é desperdiçado, menos o vil metal. Antes da internet, essas informações eram buscadas na rua, por meio de um trabalho de contra-informação, ou seja, o repórter era obrigado a infiltrar-se no submundo para obter a informação desejada. Com a googlemania, esse trabalho – que já era raro nas redações – foi desaparecendo, até porque o informante passou também a utilizar a internet para se comunicar.

Aliás, parte da nova geração de repórteres torce o nariz para esse trabalho de investigação a céu aberto com o argumento de que ele é perigoso e antiético. Realmente, misturar-se a bandido, seja por qual motivo for, é perigoso, mas é eticamente correto. Caco Barcelos sempre trabalhou assim. Eu e Policarpo Junior, editor da Veja em Brasília, começamos a carreira fazendo isso de parceria. Caco reclamou na Globo News outro dia que a imprensa está cometendo muito erro. “Na pressa de denunciar, pega muita gente inocente”, ele disse. Chamo isso de pescaria de rede. Isso ocorre não apenas pela pressa de denunciar. O problema está na forma de lidar com o jornalismo de dossiê, que é complicado. Se o trabalho não é bem feito, vira denuncismo.

A compreensão que tenho de tudo isso – inclusive, desse novo trabalho da Folha – é de que se a nova geração de repórteres aprender a lidar com esses calhamaços e com a emoção – peca-se muito pela pressa, como disse Caco –, ela vai contribuir muito para a moralidade dos serviços públicos. Principalmente se souber fazer bom uso dessa ferramenta extraordinária que é a internet.

 

 

Outubro/2011

A corrupção e a função social do jornalista

Por José Cleves em 04/10/2011 na edição 662

Passou da hora de os jornalistas trocarem a crítica genérica sobre a corrupção no país por algo mais prático. Quando o veneno da execração pública já não mais resolve (veja caso Maluf), “porque o crime compensa” (dos R$ 40 bilhões desviados dos cofres públicos federais entre 2002 e 2008, como informa a Fundação Getúlio Vargas, creio que nem 1% foi ressarcido ao erário), a solução é evitar que o mal aconteça e a imprensa pode fazer isso porque corrupção é uma doença contagiosa que prolifera pela omissão. A verdade é que a lei que trata do crime de improbidade administrativa (8.429/92) é maravilhosa na teoria e ordinária na prática.

Não acredito em crime perfeito e não admito o argumento de que esse é um problema estritamente da polícia. Ora, todo mundo sabe que polícia trabalha na consequência do fato. A Militar patrulha e registra ocorrências e a judiciária (Civil e Federal) investiga o fato acontecido. Nenhuma delas tem a função de fiscalizar os órgãos públicos. Esta é uma tarefa do Ministério Público, que é um poder autônomo e desvinculado dos demais, que são por ele fiscalizados – inclusive a polícia (art. 127 a 130 da CF). Mas não é operacional. O promotor não frequenta repartições públicas, não acompanha fisicamente o dia-a-dia da política, não fuça gabinetes. O mesmo pode-se dizer dos conselheiros dos Tribunais de Contas, outra instituição desvinculada dos demais poderes e responsável pela fiscalização das contas públicas –dinheiro, bens e valores públicos (art. 71 CF).

Portanto, sobrou para os jornalistas, que são obrigados a escarafunchar gabinetes, levantar tapetes e se intrometer nos negócios do governo para relatar ao público o que os seus representantes e prepostos estão fazendo com o seu dinheiro. Por essa razão, não podemos ficar no limite do escândalo. Imagine um médico pasmo com o agravamento da doença de seu paciente, sem fazer nada. Ao repórter omisso, aplica-se a mesma premissa do juramento hipocrático, por crime de má conduta na apuração do fato. Como a nossa atividade é autônoma e sem uma autorregulação, pela ausência de um conselho federal, por exemplo, ela foge ao controle do Estado e da própria classe, não havendo meios legais para se punir o mau profissional, a não ser quando ele comete crimes comuns previstos em lei.

Frente contra a Corrupção

A informação é um bem social imprescindível – foi por falta dela que os Estados Unidos sofreram o 11 de setembro, o maior atentado terrorista da história. O Estado democrático e o dever de ofício levam o jornalista e o promotor à condição de predadores dos agentes públicos infiéis – um fuça e o outro jurisdiciona – com a diferença de que o salário do promotor é pago pelos contribuintes, que não visam ao lucro. Já o jornalista presta serviço para empresários que só pensam em dinheiro. O promotor desonesto pode perder o emprego para sempre, mas se o repórter pegar um jabá, por exemplo, corre o risco de ficar desempregado temporariamente porque essa é uma prerrogativa do veículo onde trabalha. Ou seja, no caso do jornalista, a relação patrão-empregado não passa pelo crivo da moralidade.

É por essas e outras razões que defendo, ardentemente, a autorregulação da profissão de jornalista, seja através de um conselho ou ordem, para o autocontrole da conduta ética e profissional da categoria, através de instrumentos que vão além de meros preceitos éticos. É humilhante uma classe de intelectuais como a nossa, responsável por tão nobre missão, não ter competência para se organizar na forma de uma instituição como a dos advogados ou médicos, por exemplo, que possuem instrumentos próprios para o controle dos registros profissionais. Não admito que o controle de registro profissional do jornalista continue sendo feito pelo Ministério do Trabalho e Emprego, se temos plenas condições de ter o seu domínio de forma mais eficiente e competente.

Lavando a roupa suja, temos que considerar que boa parte dos jornalistas peca por falta de qualificação ou de caráter – ou dos dois juntos. A falta de caráter não tem cura (e nem ensinamentos, como pensava Sócrates), mas qualificar é possível. Por isso sugiro à Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e demais entidades representativas da classe que realizem um encontro nacional da categoria para conscientizá-la sobre o seu real papel na fiscalização dos agentes públicos e orientá-la sobre meios e métodos de atuação – os critérios de conduta ética e a importância da imprensa como guardiã do patrimônio público. O mote do encontro seria o verdadeiro papel da imprensa diante do aumento da corrupção no país. Como convidados, teríamos a participação de representantes do Ministério Público, do Poder Judiciário, da Polícia, do Tribunal de Contas e do Poder Legislativo e Executivo – todos eles no plano estadual e federal – para a formação de uma grande Frente contra a Corrupção.

Venda de espaço

Além de integralizar esses poderes, assuntos importantes, como o acesso aos registros públicos e o aspecto jurisdicional das ações, enriqueceriam o debate na busca de um atalho para o combate à corrupção no país. O Brasil conta hoje com 5.502 municípios, creio que 70% deles com cobertura jornalística, seja por veículos próprios ou regionais. Segundo a Associação Nacional de Jornais (ANJ), existem no país 4.056 jornais filiados à entidade e um número não calculado de não filiados. Mas, em termos efetivos, pode-se dizer que 90% deste trabalho é ineficiente. Ou seja, praticamente sem nenhuma fiscalização jornalística rigorosa.

Este fato agravou-se com a dispensa do diploma para o exercício da profissão de jornalista pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Moral da história, o que estava ruim, piorou ainda mais. Até porque existem os jornais pontuais, que surgem em época de eleição para dar apoio a este ou aquele candidato. São panfletos que não deveriam ter nenhum crédito, mas são formadores de opinião – e o pior: por traz de cada um desses jornais tem sempre um jornalista fazendo bico para sobreviver.

Sei que a forma com a qual a imprensa nanica fiscaliza os agentes públicos no interior é altamente favorável à corrupção porque a maioria destes veículos depende de verbas públicas para sobreviver. Vende espaço e opinião em troca de favores. Esta relação incestuosa anula a imprensa e faz do jornalista um contribuinte passivo da corrupção. Ora, é compreensível que o dono de um jornal do interior dependa de verbas públicas para custear o seu veículo, mas ele não pode se anular por completo. Tem, no mínimo, que cumprir a sua obrigação de informar o público sobre todos os fatos políticos que ocorrem na cidade porque éfunção do jornalismo nos regimes democráticos fiscalizar os poderes públicos e privados e assegurar a transparência das relações políticas, econômicas e sociais.

O jornalismo declaratório

Por conta disso, a imprensa e a mídia são, às vezes, cognominadas de o Quarto Poder, aquele que é responsável pela fiscalização dos poderes constituídos – Executivo, Legislativo e Judiciário. Assim sendo, é obrigaçãodo jornalista fazer a cobertura sistematicamente do Poder Legislativo, comparecendo a todas as reuniões ordinárias e extraordinárias para levar ao público o que rola nos seus bastidores e com isso fiscalizar o Poder Executivo, que sem o Legislativo não faz nada. É preciso, ainda, ter profundo conhecimento do seu Regimento Interno e da Lei Orgânica do Município.

Recomenda-se que o material obtido nos debates públicos vá para o mix de reportagem, onde deve ser publicado com isenção, ficando as impressões jornalísticas para a seção de opinião. Com isso, o jornal cumpre o seu papel pela concisão do fato relatado. Este tipo de trabalho sério normalmente é reconhecido pelas autoridades, até porque o bom jornalista é aquele que se impõe pelo respeito e a seriedade de seu trabalho. O segredo é se informar bem para informar melhor ainda.

Vale lembrar que as coberturas dos poderes legislativos são exauridas ao final das reuniões porque este é um poder representativo de todos os interesses políticos e coletivos. Dentro desta Casa estão os representantes do povo, dos partidos políticos, do prefeito e de todos os demais segmentos da sociedade, de forma que se a fala de um vereador ou de um deputado ofender alguma autoridade, lá estará, com certeza, o representante legal deste para fazer a sua defesa. Se isso não ocorre, não é problema do repórter. Funciona assim. É o que chamamos de jornalismo declaratório – um fala e outro se defende, através de um debate democrático e salutar. O jornalista, neste caso, é mero mediador de fatos.

Relação estritamente profissional

Outra atenção especial deve ser dada às licitações públicas que, por lei, são publicadas na imprensa oficial. O repórter precisa conhecer a lei que rege as licitações públicas (8.666/03), ler os editais e checar os aditivos, que não podem passar de 25% do valor da obra ou do serviço a ser prestado. É sabido que as principais irregularidades detectadas pelos Tribunais de Contas nas prestações de contas dos municípios estão nas licitações, movimentação de pessoal e no setor de compras, procedimentos esses que não passam pelo Legislativo. Portanto, é necessário ao repórter ficar atento a tudo isso porque o tamanho do dinheiro público que vai para o ralo depende do tamanho da omissão jornalística. Até porque, é sempre bom lembrar, o poder judiciário trabalha por provocação. Por isso é importante ao jornalista atuar em parceria com o Ministério Público, que tem poderes para, entre outras coisas, mover uma ação cível pública contra um prefeito ou vereadores por crime de improbidade administrativa.

A eficiência jornalística tem tudo a ver com a conduta pessoal do jornalista. Portanto, o ideal é que o repórter evite qualquer relação que venha mais tarde a criar constrangimentos para o livre exercício da profissão. O repórter não deve ter nenhuma relação de amizade com políticos e demais autoridades que fazem parte de seu contexto profissional. Evitar ao máximo possível as informalidades, não aceitar nada que venha a comprometer o seu trabalho, como favores ou agrados, e não fazer parte dos segredos profissionais e/ou particulares de agentes públicos que ostentam poderes porque isso compromete a relação profissional. Eu não vou a festa de político, não lhe peço favores, não os aceito e nem dou margem para que eles me tratem como amigo. A nossa relação tem que ser estritamente profissional, de respeito mútuo, para que possamos ser céticos, críticos e independentes, como dever ser um bom jornalista.

Agindo desta forma qualificada e ética iremos, com certeza, contribuir muito para a redução da corrupção no país.

 

 

Grande imprensa vira artigo de consumo

Por José Cleves em 25/10/2011 na edição 665

 O torcedor mineiro está pagando caro pelo péssimo comportamento da imprensa local no episódio do fechamento de seus dois únicos estádios – o Mineirão, em reforma para a Copa 2014, e o Independência, também interditado para reforma. Faltou senso crítico para impedir que o então governador e hoje senador Aécio Neves (PSDB) permitisse esta burrice de deixar a capital sem estádio. Aliás, falta de senso crítico e burrice, neste caso, é eufemismo. Houve na verdade uma venda em atacado e no varejo da opinião para o governador em troca de verbas públicas. Teve de tudo: controle da redação, censura, autocensura, covardia, enfim, a imprensa comprada mais uma vez traiu o povo e deixou a conta para o torcedor e os jogadores pagarem.

Sem estádios, todos os jogos do Brasileirão foram fora de casa para os três times mineiros – Cruzeiro, Atlético e América. Foi um erro brutal do governo que a imprensa cega e conivente deixou passar batido. Dirão alguns que a medida era inevitável, devido à necessidade das reformas. Mas cadê a competência do governo que não previu isso? Outros dirão que o governo buscou alternativas, reformando a Arena do Jacaré, em Sete Lagoas. Uai, por que arrumar um campo longe da capital, se tínhamos alternativas na Grande BH? Em Nova Lima, a menos de 20km, tem um terreno disponível do centenário Vila Nova, o time mais tradicional do interior mineiro, várias vezes campeão do Estado. Por que não se construiu o estádio nesse terreno, se havia projeto para isso,  inclusive uma emenda no orçamento federal com esse fim? Chegou-se até a elaborar um projeto do estádio que seria a terceira via para jogos de até 30 mil espectadores. Participei da apresentação desse projeto, com emenda no orçamento federal proposta pelo então deputado federal Virgílio Guimarães (PT).

Os racionais e os omissos

A verdade tem que ser dita. O governo levou o projeto para Sete Lagoas porque Nova Lima é administrada pelo PT. O mesmo ocorre com as vizinhas Betim e Contagem, duas das maiores economias do Estado. Ou seja, o ranço político falou mais alto, obrigando torcedores e jogadores e enfrentarem uma rodovia federal (BH-Brasília) para os jogos “em casa”. Ficaram outras duas alternativas: o Parque do Sabiá, em Uberlândia, a 556 km da capital, ou o Ipatingão, no Vale do Aço, a 230 km pela BR 381, no trecho mais perigoso do país.

A pergunta é simples: onde estava a imprensa nessa hora, que não deu o grito? Enfiaram o rabo entre as pernas e deixaram a coisa rolar porque havia, à época, a expectativa de Aécio ser candidato à Presidência da República. Os racionais comprados pelo governo, mesmo sabendo das consequências dessa aventura, ficaram calados. E os omissos por ofício, idem. Os poucos que chiaram não tiveram vez porque o sistema é cruel. A imprensa é controlada por empresários que somente visam ao dinheiro. Quando o cara presta, ainda dá para equilibrar a situação, como ocorreu em alguns poucos veículos de comunicação onde um ou outro repórter botou a boca no trombone, mas foi “engolido” pela maioria.

O risco de cobrir a série B

Não estou afirmando que o Cruzeiro, tido como favorito da competição, virou esse lixo somente por causa disso. O mesmo falo do Atlético, que tinha condição de disputar o título, mas voltou a brigar pelo não rebaixamento. E do América, que privatizou a lanterna desde o início do campeonato. Os times erraram também, claro. Mas o fator campo foi o que mais pesou. Fui domingo a Sete Lagoas ver o jogo Cruzeiro e Corinthians somente para sentir na pele a dor do torcedor. Uma tortura. Muitos perderam a viagem por falta de ingresso e depois tiveram que enfrentar engarrafamento na volta. A revolta aumenta quando vemos o jogo sujo que motivou toda essa peleja. Veja o caso do Cruzeiro. O seu presidente, Zezé Perrela, foi candidato a senador na chapa de Itamar Franco pelas mãos de Aécio. Imaginem se ele iria reclamar das decisões do então governador de levar os jogos para Sete Lagoas.

Mas a minha queixa maior é contra a imprensa, da qual faço parte, como jornalista. Uma vergonha, o que vem ocorrendo em Minas. Nessa, o povo não tem culpa. Qualquer pesquisa de opinião feita para avaliar a credibilidade da imprensa mineira vai ser uma tragédia os jornalistas. O jornal Estado de Minas, o chamado jornal dos mineiros, já vendeu a alma para o diabo há muito tempo. As páginas de política são do Palácio da Liberdade desde quando Aécio foi eleito governador. Virou chapa branca e objeto de chacota dos leitores.

A Rádio Itatiaia, uma das maiores do país e líder de audiência em Minas, também andou mal nessa, embora alguns de seus profissionais continuem mantendo a sua linha de independência, como é o caso do meu amigo Eduardo Costa, o Carlos Viana e o próprio Laudivio Carvalho, que não poupam o Estado errado. Mas o pessoal do esporte, comandado por Emanuel Carneiro, que conheço pouco e ouço muito, todo dia, foi outro que bobeou, não por maldade, mas por descuido. Eu diria que até essa emissora, de língua afiada e extremado senso critico, falhou.

A verdade é que a imprensa deixou o mal acontecer e agora corre o risco de cobrir a série B no ano que vem, a menos que o Boa Esporte, mesmo expatriado de sua cidade natal, Ituiutaba – e agora de Varginha, a terra dos ETs – suba para a elite do nosso futebol.

                                                                                                                  

 

 

 

 

 

Novembro/2011

O descrédito da imprensa e os jornalistas

Por José Cleves em 29/11/2011 na edição 670

 O momento vivido pela imprensa brasileira não é bom em todos os aspectos, devido à falta de credibilidade de nossos veículos de comunicação. Não é só a imprensa que está na lista negra do povo. Até os Correios, sempre muito acreditados, hoje não merecem mais a confiança de antes.

O descrédito é geral. Antigamente, as pessoas acreditavam nas instituições e nos seus superiores. Toda autoridade ou profissional de certa linhagem, ainda que de uma insignificante repartição ou profissão, era chamada de doutor, tinha status e argumentos crédulos porque fazia parte da cultura da família brasileira respeitar os mais graduados. As pessoas mais velhas, pelo simples fato de serem idosas, eram respeitadas e a hierarquia familiar determinava que tios, avós, pais e padrinhos deveriam ser ouvidos. Essa coisa funcionou assim no Brasil até que duas instituições – a política e a polícia – resolveram estragar tudo.

A batata da polícia começou a assar quando ela passou a servir à ditadura. Batia porque mandavam. Depois, tomou gosto pela coisa e passou a bater por prazer e, finalmente, bate e mata para ganhar dinheiro. Com a política aconteceu o inverso. Tolhido de fazer o que o povo mandava, por conta do regime de exceção, o político brasileiro se acostumou a não cumprir as suas obrigações e caiu na vagabundagem. Enfiou as mãos pelos pés. É corrupto por natureza. O sistema ficou tão viciado que fez do vaticínio de Rui Barbosa uma profecia: o político de hoje tem vergonha de ser honesto. Algo parecido com o comportamento dos jovens moderninhos dos anos 1970, que não tinham coragem de falar que não fumavam maconha porque isso era caretice.

Moral da história: o errado virou coisa normal no Brasil.

Emocional a mil

Infelizmente, os donos da imprensa entraram na dança e hoje não negam fogo a políticos corruptos: vendem a opinião por dinheiro. É bom que se diga que a opinião de um jornalista não pode ser comparada à de um cidadão comum, que fala o que quer e o que pensa, pelo fato de ser este é um direito sacramentado pela nossa Constituição. A opinião do jornalista é multiplicada pelo poder de penetração do veículo em que ele trabalha, de modo que o que ele escreve ou fala forma opinião, pois se trata de um profissional da comunicação que tem o dever de se informar para informar bem o público.

Aos olhos e ouvidos do leigo, presume-se que a imprensa e, consequentemente, o seu comunicador, são competentes o bastante para opinarem sobre a notícia. Esta é a grande responsabilidade da classe jornalística que, infelizmente, não tem correspondido à altura. O meu grande temor, como profissional rodado, já aos 61 anos de idade, é que o mal que hoje aflige mais de 90% dos veículos de comunicação de massa do país, contamine toda a classe jornalística.

Já não bastam as reportagens malfeitas, as matérias apressadas, mal apuradas, sem o devido contraditório ou reconstituídas conforme o salário que se recebe. A coisa piorou quando a televisão passou a adotar espaços de opinião na fala de seus âncoras. O apresentador dá a notícia e a seguir opina. Claro que o Ibope aumentou porque se a notícia é polêmica e o cara atiça a coisa, o emocional do público vai a mil e essa interatividade telepática, do tipo, “o cara falou o que pensei”, arrebenta. No rastro disso, vieram os Datena da vida levantando o Ibope da empresa para disparar o faturamento.

A sobrevivência digna

Esse mal atingiu também os impressos, ao veicularem notícias bombásticas – e convenientes – desacompanhadas de uma opinião equilibrada – aquele espaço crítico onde o jornalista reconhece que o jornal tinha que informar o público do ocorrido, mas é bom anotar que os fatos ainda estão em apuração e coisa e tal. Pode até o articulista ser mais incisivo em suas considerações. Até porque se ele tem espaço no veículo é porque é competente.

O importante é que o profissional seja autêntico. Ou seja, escreve ou fala o que pensa, com base no que apurou e nas suas convicções, sem desvirtuar os fatos para atender o interesse privado em detrimento do público.

A minha maior preocupação é que esse efeito dominó derrube a classe jornalística que tem a obrigação de fiscalizar o poder constituído. Não podemos vergar diante desse descalabro, sob pena de colocarmos em risco a nossa democracia. Já escrevi neste espaço que os hábitos de vida de um jornalista devem ser metódicos e bem reservados. É preciso ser arisco, fugir dos assédios, evitar dividir segredos com autoridades e ter coragem para dizer a verdade porque a independência é tudo na vida de um repórter.

Depois de tudo que passei na vida, sempre servindo a notícia, posso dizer do fundo da alma que o investimento na independência jornalística é algo que compensa, não apenas para satisfazer o ego, mas para a sobrevivência. Se hoje tenho espaço no Observatório da Imprensa – que namoro deste a sua criação, pelo Alberto Dines – é porque sou um profissional confiável.

Para fechar o assunto, devo dizer que trato dos meus filhos com um jornal que praticamente me foi doado por um amigo rico para que eu pudesse continuar a minha vida de repórter independente. Ficamos seis meses rejeitando publicidade oficial, no vermelho total, para demonstrar que estávamos, de fato, a serviço do interesse público.

Isso me dá mais do que satisfação pessoal: é a minha sobrevivência digno.

Agosto/2010

O jornalista e o novo código de ética médica

Por José Cleves em 17/08/2010 na edição 603

O novo Código de Ética Médica, já em vigor no Brasil, encurta a rédea da relação médico-laboratório-paciente em benefício do diagnóstico correto e do tratamento isento de interesses mercadológicos. Os preceitos éticos nele inseridos trocam as recomendações genéricas do passado por medidas bem especificadas e fiscalizadoras. Um remédio e tanto para um mal que vinha há anos corroendo o ofício. Esse novo tratamento médico remete a classe jornalística a repensar também os seus preceitos éticos.

A minha grande preocupação é exatamente com a função do jornalista diante do fato controverso. Ou seja, é necessário considerar faltosa – e grave – a divulgação de um fato com base apenas numa versão, quando a verdade não é conhecida. Entendo que a notícia de fatos controversos tem que ser extraída de três convicções: a oficial, notadamente a da polícia; a do acusado; e a do repórter, que pode coincidir ou não com as outras duas.

Não se trata de opinar, mas de se buscar elementos probatórios daquilo que vem sendo apurado. É preciso esgotar recursos, exaurir buscas, expor provas para o julgamento da opinião pública. O modelo atual, de informar o que nos é informado sem nenhuma análise crítica do fato, pouco ou quase nada acrescenta para a busca da verdade.

Ou é notícia ou é um fato duvidoso

O debate público, muito a gosto da mídia eletrônica, fomenta a polêmica, mas é preciso ir além desse debate. O jornalista tem que se aprofundar na matéria, exercer o seu papel de "ver para crer" para não ficar no limite da subserviência. A prolixidade da comunicação moderna tem levado os atores de um fato a uma loquacidade perigosa. As pessoas desenvolvem muito bem o seu papel de representar e isso influencia facilmente a opinião pública. O jornalista tem que se apresentar no debate com alto conhecimento de causa para contrapor argumentos vazios.

Infelizmente, não é isso que temos visto por aí. Vejam o caso Bruno, por exemplo: quantos jornalistas obtiveram cópia do inquérito para estudá-lo antes de informar a opinião pública do sucedido? Creio que nenhum. Isso é um absurdo! Os levantamentos policiais, mesmo as provas científicas, são, em boa parte, passíveis de interpretações tendenciosas e até mesmo de fraudes. É bom salientar que a polícia é partícipe do fato por ela apurado porque a sua obrigação diante da justiça fica no limite dos indícios. O relógio da investigação policial gira no sentido da acusação, sem a participação da defesa, que somente irá se manifestar na justiça.

Portanto, assim como é dever do Ministério Público investigar as ações externas da polícia (Art. 129 da CF), é também dever do jornalista investigar as diferentes versões de um fato antes de sua apresentação ao público, da mesma forma que é dever de um médico obter um diagnóstico correto, isento de interesses mercadológicos.

A lógica é a seguinte: a notícia tem que ser, obrigatoriamente, o resultado de um trabalho jornalístico sério e competente. Do contrário, não é notícia, é um fato duvidoso.

Agosto/2010

Delegado mente a jornal e desrespeita a Justiça

Por José Cleves em 31/08/2010 na edição 605

 Lamentável a declaração do delegado do caso Bruno, Edson Moreira, à Folha de S.Paulo do dia 15 de agosto. Em resposta à denúncia que lhe fiz de ter fraudado provas e manipulado o inquérito para transformar-me de vítima a réu no assalto que resultou na morte de minha mulher, em 2000, Moreira criticou a Justiça e voltou a mentir. Ao invés de acatar a decisão unânime e soberana da Justiça, que legitimou a minha versão do assalto como única e verdadeira, insurgiu-se contra o Tribunal do Júri, a mais antiga e democrática instituição jurídica do mundo.

Moreira afirmou à repórter Cristina Moreno de Castro que "jurado é leigo, age pelo coração e a emoção e não gosta de provas científicas". Não satisfeito, o delegado afirmou que a defesa "postergou o processo que caiu no esquecimento". E mais: que a versão do assalto foi investigada e descartada.

Se a decisão dos jurados contrariou as provas dos autos, como diz Moreira, por que a acusação não conseguiu a nulidade do julgamento? Pelo que disse o delegado, os desembargadores da 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de MG, Sérgio Braga, relator do acórdão confirmando a versão do assalto, e seus pares Eduardo Brum e Edelberto Santiago, que acompanharam a sua decisão, também são "leigos". A lamentável acusação do delegado atinge, também, o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Nilson Naves, e do Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandowski, que foram igualmente favoráveis à minha inocência, no cumprimento da soberania dos veredictos preconizada na Constituição Federal (Art. 5º, inc. XXXVIII, "c").

Específicos, objetivos e isentos

Não foi, também, o advogado Marcelo Leonardo que postergou o processo. Foi a acusação, com a infinidade de recursos. E perdeu todos. Meu caso não caiu no esquecimento porque eu não deixei. A mídia, coadjuvante da acusação por omissão e incompetência, é que desdenhou da minha versão do assalto ao legitimar a acusação policial como única e verdadeira. E perdeu também. Por conta disso, em momento algum deixei ou deixarei que esse meu drama caia no esquecimento. Vai para a história como um dos maiores crimes praticados contra a liberdade de imprensa deste país e também como um dos maiores erros da imprensa.

Os impropérios do delegado na reportagem da Folha não ficam por ai. Ele disse que tinha "provas científicas" de que eu era o culpado. Ora, quais são essas provas? No inquérito Nº 654/2000, enviado por ele à Justiça, foram elaborados três laudos sobre a arma colocada no local do assalto para incriminar-me (digital, balística e teste para saber se ela soltava pólvora). E todos esses laudos foram favoráveis à defesa. Outro laudo, para saber se havia pólvora em meu braço (residuográfico), também foi negativo.

Também os demais levantamentos técnicos feitos no corpo da vítima e no local do assalto foram favoráveis à defesa. Por tudo isso, gostaria muito que o delegado explicasse por que foram feitos dois depósitos da arma: um sobre a pedra e outro sobre um pano preto grande, sugerindo que utilizei uma luva. Cadê a foto do primeiro depósito da arma, conforme auto de apreensão feito pela sua equipe, e que não consta no Laudo de Levantamento do Local 010 00 232? Quem fez a segunda montagem fotográfica da arma sobre um pano preto que substitui a primeira foto neste laudo? Cadê a misteriosa luva? Sumiu no fórum ou nunca existiu?

Sugiro ao delegado e aos que ainda duvidam do que estou falando que leiam o processo ou então o meu livro A Justiça dos Lobos – por que a imprensa tomou meu lugar no banco dos réus (disponível para compra no site WWW.aimprensalivre.com) para que possam inteirar-se desses fatos vergonhosos. Afinal, a polícia, como instrumento provisório do Poder Judiciário, pode ser genérica na sua fala ao público, mas nós, jornalistas, não gozamos dessa prerrogativa. Temos que ser específicos, objetivos e isentos. Por isso escrevi o livro, que nada mais é do que o processo comentado e ilustrado dessa fraude.

 

Minas e os números da criminalidade

Por José Cleves

 

Causa polêmica em Minas a denúncia de que o governo vem escondendo os verdadeiros números da violência no estado. Nada de novo para mim e tantos outros que dormem com um olho no peixe e outro no gato. Em 1998, denunciei isso no jornal Estado de Minas. A manchete foi: “Minas esconde os números da criminalidade”. Registrei a fraude no meu livro A Justiça dos Lobos, em 2009 (p.35). Descobri, por exemplo, que a PM anunciava em setembro daquele ano uma média de 10 assaltos/dia, contra 24 anotados no seu relatório reservado. O Ministério da Justiça confirmou a manobra.

O curioso é que, 14 anos depois, a imprensa descobre que está sendo enganada. Pior é que os graúdos dessas corporações fazem isso para manterem no cargo políticos vagabundos que vivem à custa de números generosos de sua administração. Todo jornalista sabe que os políticos agem assim. Quando o assunto é criminalidade, o governo empurrar os números para baixo. Na ditadura era a mesma coisa. Os generais escondiam a verdade para sobreviverem da mentira.

O sistema matava e falava que era suicídio ou acidente (caso Vladimir Herzog, Alexandre Van Baumgarten – executado com um tiro na cabeça e caso dado como afogamento; depois trocaram o corpo e mandaram outro para o velório etc.). Havia casos mais escabrosos ainda. Durante o reinado dos Homens de Ouro no Rio, na década de 1970, a polícia registrava como disparo acidental (ou legítima defesa) uma execução com 100 ou mais tiros. Era fácil isso porque vivíamos um regime de exceção. No regime vigente, de democracia ampla, o cara tem que se virar nos trinta para enganar os outros, mas estatisticamente falando, nada é impossível.

Traído pela mentira

Aliás, toda estatística política é dúbia, de modo a permitir um duplo sentido, algo parecido com horóscopo. As pegadinhas desses números mágicos, ainda que contenham questões primárias, fisgam até os mais céticos. Exemplo: se um restaurante fornece 50 marmitas para 50 operários, cada um comeu uma marmita. Ou uma dezena passou fome porque é possível um cara comer cinco marmitas (ou dez comerem três ou mais cada) e deixar um punhado de companheiros chupando dedo.

É por essas e outras razões que nunca acreditei nos registros oficiais quando há interesse político sobre os mesmos. Infelizmente, a maioria dos jornalistas acha mais confortável copiar o que dizem as autoridades a ter que questioná-las ou criticá-las pela inconveniência do conflito. No caso dos números mentirosos revelados pelo governo de Minas, o menos culpado nisso tudo é o policial de rua, que rala para combater a bandidagem mas é traído pela mentira, em detrimento de uma política austera de combate ao tráfico de drogas, por exemplo.

Solução pela estatística

Brizola já dizia: droga é um artigo de importação que deve ser reprimido na fronteira. Se deixar entrar, paciência. Não será a polícia estadual que vai fazer a diferença nesta relação mercantil entre a oferta e a procura. Enquanto não houver uma repressão eficiente na fronteira para evitar a entrada da droga no país, esse produto do capeta continuará sendo cotado pela lei da oferta e da procura. Não há outro jeito. Para se combater isso, com as fronteiras escancaradas, teríamos que reduzir a procura, o que somente seria possível com um trabalho sério de conscientização e de tratamento dos dependentes químicos, mas esse é o lado mais complexo dessa relação de mercado. Melhor seria começar pelo fechamento da porteira.

Ocorre que na cabeça de determinados degenerados inferiores (era assim que os antropólogos, sociólogos e psicólogos do século 19 classificavam os pouco inteligentes) com poder de mando neste país, é mais fácil resolver o problema pela estatística. No lugar de colocar 30 assassinatos em 30 dias, muda-se para 15 assassinatos e 15 encontros de cadáver em um mês e troca-se um crime por dia por um a cada dois dias, enfiando-se isso goela abaixo da imprensa e ponto final.